quarta-feira, setembro 6

Amor em Belfast

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1985
Autor : George Target

A história comovente de dois jovens que triunfaram sobre os horrores das lutas sectárias.

Vamos chamá-lo de Ian. Não é o seu nome verdadeiro – mas na Irlanda do Norte, nos tempos atuais, mais vale prevenir que remediar. Ian já sofreu o suficiente nos seus 24 anos de vida.
Descendente de protestantes convictos, seu pai, soldador nos estaleiros, era um homem equilibrado por natureza. Sua mãe, dona de casa exemplar, cozia o melhor pão das redondezas e dirigia a família com mãos de ferro. Tinha dois irmãos mais velhos, ambos desempregados.
Ian foi sempre bom aluno e ganhava já um bom ordenado, como operário especializado, numa fábrica. Sossegado, um pouco sisudo, gostava de passear a pé pelo campo nas tardes e finais de semana ensolarado de verão, o que ele mais apreciava, contudo, era ler um livro, sentado à lareira, na longa solidão do inverno. Nunca foi muito de namorar – embora a tendência geral dos homens, na Irlanda, seja de casar tarde.
Há dois anos, precisamente no dia do seu aniversário, ao voltar para casa depois do trabalho, um terrorista num carro jogou uma bomba e Ian, que ia a pé, caiu por terra, mergulhando no pesadelo de uma cegueira repentina.
Foi levado de imediato para o hospital, onde operaram suas lesões internas, e fraturas; a vista estava irremediavelmente perdida.
Os outros ferimentos sararam com o tempo, embora as cicatrizes o tivessem desfigurado para sempre; as marcas no seu íntimo, embora invisíveis, eram ainda mais nítidas.
Mal falava, quase não comia nem bebia, pouco ou nada dormia. Permanecia dias a fio deitado na cama, absorto em seus pensamentos, completamente mergulhado na escuridão. Assim se passaram quase quatro anos.
A bela Bridget. Havia, porém, uma enfermeira que parecia ser a única pessoa capaz de faze-lo reagir.
Vamos chamá-la de Bridget, um nome tipicamente irlandês. Descendia de católicos praticantes. Seu pai era carpinteiro e estava quase sempre trabalhando na Inglaterra. Era um homem decente, que amava a família, com a qual passava os finais de semana sempre que lhe sobrava dinheiro para a viagem. A família o amava, como só um pai ausente pode ser amado. A mãe era uma simples dona de casa, que fazia o melhor ensopado das redondezas e dirigia a família com mão leve e bom coração. Bridget tinha seis irmãos e quatro irmãs, a mais nova das quais, Mary, de 11 anos apenas, era a queridinha do pai.
Bridget fora sempre boa aluna, havia tirado o curso de enfermagem num famoso hospital de Londres e então, com 21 anos, era enfermeira no maior hospital de Belfast.
Enérgica mas sisuda, tinha uma voz excelente e gostava, sobretudo, de cantar músicas populares. Nunca ligou muito a namoros - embora não lhe faltasse quem a quisesse.
O seu coração, porém, deixou-se comover por Ian, pois havia naquele rapaz perdido e só qualquer coisa que a comovia até as lágrimas. É verdade que ele não as podia ver, mas, mesmo assim, ela receava falar com medo de deixar trair suas emoções.
Seus receios não eram infundados. O som melodioso de sua voz, a maneira como se ria, acabaram por arrancar o rapaz do fundo da sua depressão. Também havia a ternura, a gentileza das palavras, a convicção com que ela lhe falava de Jesus Cristo.
À medida que a longa escuridão dos dias se transformava em semanas e meses, ele se habituou a ficar de ouvido atento aos passos dela e virava o rosto na direção do som, como uma flor procura o sol.
Ao completar quatro meses de internamento, ele foi declarado cego incurável, mas o que sabia agora sobre o amor dava-lhe coragem para aceitar tudo.
Deram-lhe alta, e ele começou logo um tratamento de reabilitação que durou meses: aprender a lavar-se, a barbear-se e a vestir-se sem ajuda, a movimentar-se pela casa sem tropeçar nas cadeiras, a passear nas ruas de bengala, a ler Braile, a superar a piedade arrasadora que sentia no próprio ar que respirava. O amor dava-lhe esperança pra continuar a viver e a tentar.
Eles não conseguiam passar muito tempo juntos: uma noite ou outra, às vezes uma tarde, quando o trabalho lhes permitia. Apesar de terem tudo contra eles, a religião, a política, a oposição das famílias, viviam para aqueles breves encontros onde conheciam a paz verdadeira e a alegria autêntica.
As famílias ficaram estupefatas! Pensando em casar? A própria lei de Deus certamente proibia uma coisa daquelas.
“Que aliança pode haver entre os filhos da luz e os filhos das trevas?” gritava o pai em voz ameaçadora. “Você só vai casar com ela passando por cima do meu cadáver!”
“A igreja católica”, explicava o pároco da igreja dela, “não aconselha os casamentos mistos, portanto o melhor é tirar essa idéia da cabeça.”
Foi assim que, sujeitos a toda a espécie de pressões – discussões permanentes, ameaças, promessas e até mentiras descaradas – foram afastados um do outro. Aliás, já tinham chegado a uma fase em que discutiam por tudo e por nada, diziam um ao outro coisas que magoavam, até que, numa noite de chuva, os corações gelados de infelicidade, ela afastou-se dele pela rua encharcada.
Ian voltou à sua solidão. Foram dias e semanas de amargura. “Você não vai se arrepender”, diziam a ele. “Só quem quer arranjar problemas é que casa com uma descrente!”
Ela voltou ao trabalho, com o coração despedaçado demais para poder sequer recordar. Foram semanas e meses de agonia. “Você ainda vai dar graças a Deus!” diziam a ela. “Casar com um protestante é o inferno na terra!”
Assim se passou um ano. Os atentados á bomba continuavam a assolar a Irlanda.
Uma noite, Ian estava em casa sozinho e alguém bateu à porta, desesperado.
“Ian! Anda depressa, Ian!”
Pela voz histérica e sufocada pelo choro convulso, ele percebeu que era Mary, a irmã mais nova de Bridget.
“Uma bomba! Ela está lá soterrada, quase morta! Só chama por você! Venha comigo, pelo amor de Deus, Ian, venha comigo!”
Sem sequer fechar a porta, ele pegou na mão de Mary e foi pelas ruas, tropeçando e chorando.
A bomba tinha destruído um pequeno restaurante onde Bridget estava jantando com outras três enfermeiras. Todas haviam conseguido sair dos escombros, mas Bridget ficara com as pernas entaladas. O incêndio que se seguiu estava praticamente chegando junto dela.
Todo mundo a ouvia gritar, mas ninguém conseguia chegar perto. Bombeiros, polícias, soldados, holofotes e equipamento especial vinha a caminho.
Ian dirigiu-se para o meio daquele caos todo.
“Você não pode ir para aí!” gritou o oficial encarregado da operação de salvamento.
“Ela é minha namorada!” disse Ian.
“Não seja maluco!” gritou o oficial. “No meio daquela escuridão você não consegue ver nem um palmo à frente do nariz!”
“Que diferença faz a escuridão para um homem que é cego?” perguntou Ian.
Seguiu na direção da voz dela, movimentando-se naquele inferno de trevas, com a perspicácia e o instinto próprio dos cegos, mas com a pressa a que só o amor obriga.
“Estou quase chegando,Bridget!”
E ele a encontrou, deitou-lhe a cabeça nos seus braços compassivos e beijou-a .
“Ian”, murmurou ela. “Ian...” e perdeu os sentidos, com uma criança vencida pelo cansaço.
Com o sangue ensopando-lhe a roupa, Ian segurou nela até que a equipe de salvamento conseguiu chegar lá. O que ele não podia ver, por ser cego, é que um dos lados do belo rosto de Bridget estava todo queimado.
Passado muito tempo ela melhorou. Apesar de uma operação plástica, o seu rosto ficaria para sempre marcado pelas cicatrizes.
“Que diferença faz”, dizia ela, “se o único homem que eu amo neste mundo nunca poderá ver o meu rosto?”
Reataram a sua paixão no ponto em que, afinal, nunca a haviam interrompido. As famílias de ambos resistiram até onde puderam, numa luta sem tréguas que quase acabou em pancadaria: insultos, injúrias, ameaças desaforadas. No meio da confusão, porém, Bridget pegou na mão de Ian, e juntos afastaram-se daquele local de ódio.
Casariam, sim. As convenções desaconselhavam-no, prevendo o fracasso. Mas não será o amor o melhor modo de cicatrizar todas as feridas, se não for o único?

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