quarta-feira, setembro 20

Um amor por telefone

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1980
Autor : James Less-Milne

Aquilo era um jeito muito estranho de se apaixonar, mas afinal de contas a linguagem das palavras é mais poderosa que a dos olhos...

Em setembro de 1941, depois de ter sido ferido num ataque aéreo a Londres, tive alta do hospital. Minha carreira militar não fora nada gloriosa. Eu estava decepcionado comigo mesmo e profundamente deprimido com o rumo que a guerra tomara. Felizmente naquele período fui robustecido pela amizade mais íntima e deliciosa de minha vida.
Certa noite em Londres, já tarde, eu estava tentando telefonar para um amigo. Em vez de conseguir a ligação, minha linha cruzou com a de uma mulher que também estava tentando telefonar. “O meu número é Grosvertor 8829”, eu a ouvi dizendo à telefonista, “ e quero falar com um número em Hampstead. Em vez disso, você me ligou com Flaxman sei lá o que, em Chelsea. Esse pobre coitado não quer falar comigo, de todo!
“Ah, mas quero, sim”, interrompi eu, pois gostei imensamente da voz dela. Era harmoniosa e esperta. Em vez de estar zangada, aquela mulher mostrava-se muito bem-humorada com a trapalhada. Depois de desculpas mútuas, ambos desligamos. Um ou dois minutos depois, tornei a discar e novamente atendeu o telefone dela, se bem que não houvesse qualquer semelhança entre o número dela e o que eu estava querendo conseguir.
Como parecia que as nossas linhas estavam destinadas a se ligarem, ficamos conversando por uns 20 minutos. “Por que é que você estava querendo falar com esse amigo depois da meia-noite, afinal?”, perguntou ela. Eu expliquei o motivo, que á esqueci. “E você?”, perguntei-lhe. Explicou que a mãe, idosa, dormia mal e que ela muitas vezes telefonava para a velhota tarde da noite. Depois conversamos sobre os livros que estávamos lendo, e claro, a guerra. Por fim eu disse: “Não me lembro de ter apreciado tanto um papo, há anos.”
“Isto foi muito divertido, não foi? Bem, imagino que agora a gente deva parar”, disse ela. “Boa-noite. Durma bem.”
Passei o dia seguinte todo pensando em nossa conversa, na inteligência dela, sua espontaneidade, seu entusiasmo, seu senso de humor. Também pensei no sotaque especial dela, que era suave e sedutor, sem ser de todo insinuante. Sua modulação musical ficou me perseguindo.
Naquela noite prestei pouca atenção ao que estava lendo. Por volta da meia-noite, Grosvenor 8829 estava martelando tanto em minha cabeça que não agüentei mais. Levantei-me, e, com certa perturbação, disquei o número. Escutei o tilintar rápido e livre da campainha do outro lado. Atenderam imediatamente. “Alô!”
“Sou eu”, apresentei-me. “Desculpe se a aborreço, mas podemos continuar a nossa conversa onde a deixamos ontem à noite?” Sem dizer nem sim nem não, ela começou uma dissertação engraçada e original sobre a obra de Balzac, La Cousine Bette. Depois de alguns minutos estávamos brincando e rindo como se nos conhecêssemos há anos.
Desta vez conversamos durante três quartos de hora. Ela era encantadora. A hora tardia e o nosso anonimato absurdamente convencional que geralmente cerceia duas pessoas nos encontros preliminares depois de uma apresentação. Mas quando sugeri que nos deveríamos apresentar, ela não quis saber disso. Poderia estragar tudo, disse ela. Sua única concessão foi anotar o número do meu telefone.
Consegui extrair dela a promessa de que revelaríamos as nossas identidades quando terminasse a guerra. Soube que se casara aos 17 anos com um homem desagradável, de quem estava separada. Ela tinha 36 anos. Seu filho único fora morto, havia pouco, voando, com a idade de 18 anos. Ele era tudo para ela, e falava nele tal como se ainda fosse vivo. Como ela certa vez o descrevera como sendo belo como a aurora, e em outra ocasião dissera que ele se parecia com ela em tudo, tive uma imagem dela que nunca mudou. Quando eu lhe disse como era linda, ela apenas riu e perguntou. “Como é que você sabe disso?”
Passamos a depender um do outro. Não havia nenhum assunto sobre o qual não falássemos. As nossas opiniões sobre a maior parte deles eram idênticas, inclusive a guerra. Ela me dava conselhos e força. Passamos a ler os mesmos livros, para melhor podermos comenta-los, e, como pertencíamos ambos à Biblioteca de Londres, cada qual se comprometeu a não indagar das bibliotecárias o nome do outro. Quando estávamos ambos em Londres, não se passava uma só noite em que não nos telefonássemos, por muito tarde que fosse. Eu ficava esperando o dia todo a nossa conversa seguinte. Se eu saísse da cidade para o fim de semana e não pudesse telefonar, ela se lamentava que mal conseguia dormir, de tão só.
Por vezes eu achava insuportável não poder vê-la. Ameaçava pegar um táxi e ir encontra-la imediatamente, mas ela não cedia: dizia que se nos encontrássemos e se descobríssemos que não nos amávamos como estávamos então nos amando, isso a mataria. Sempre que havia um grande ataque aéreo noturno, eu telefonava para ela, depois de terminar, para ver como ela estava. Isso sempre a divertia. Mas notei que sempre que ela imaginava que houvera um reide sobre Chelsea, fazia o mesmo.
Durante 12 meses vivi num estado de extraordinário contentamento íntimo – notável, porque o período por que estávamos passando era triste, e o nosso amor, em certo sentido, não era realizado. Mas tinha suas compensações; nosso relacionamento era completamente isento dos baixios e recifes que perseguem a turbulência da paixão, e parecia não haver motivo para que não continuasse nesse rumo igual para sempre. Afinal a linguagem das palavras é mais poderosa e mais duradoura do que a dos olhos ou a das mãos.
O destino, porém, deu um golpe rápido. Uma noite cheguei a Londres, vindo do interior, tarde da noite. Peguei o telefone e liguei para o número dela. Em vez do tom límpido da campainha, ou o sinal repetido de “em comunicação”, houve um silvo prolongado e estridente. Nunca mais pude ouvir esse sinal sem sentir uma fraqueza. Significa que a linha está com defeito ou não existe mais.
No dia seguinte repetiu-se o mesmo som... e no outro também. Aflito, liguei para o serviço de informações para descobrir o que houvera. Implorei que me desse o endereço de Grosvenor 8829, se bem que soubesse que não constava da lista, para ela evitar as impertinências indesejáveis do marido de quem se separara.
A princípio elas não quiseram me dizer nada. Acharam esquisito que eu não soubesse nem o nome da assinante. Por fim uma telefonista concordou em desobedecer ao regulamento, uma vez na vida. “Por que não?” disse ela. “Nós todos podemos ir pelos ares a qualquer momento. E o senhor, afinal, parece preocupado. O fato é que a casa à qual pertencia esse número foi atingida por uma bomba há três dias. Não pode haver mal em lhe dar agora o nome da assinante.”
“Obrigado por sua ajuda”, disse eu. “Prefiro que não o faça. Por favor, não.” E desliguei.

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