sexta-feira, setembro 1

A viagem milagrosa do S. S. Omega

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1973
Autor : Capitão Douglas Gray

“Em alguns minutos, aquele vulto escuro tomaria a forma de um submarino e afundaria o velho navio desmantelado que quase nos levara ao termo da viagem....”

Lá está ele – disse o funcionário do Ministério dos Transportes naquela manhã em Gibraltar. “Não é nenhuma beleza, mas hoje qualquer navio vale. Se conseguir leva-lo de volta à Inglaterra, será logo recondicionado para o serviço de comboios.”
Contemplei hesitante o velho vapor, triste e escangalhado, ancorado à parte como se tivesse peste. Não era segredo que seu comandante e a maioria da tripulação o haviam abandonado. Três vezes tinham-se feito ao mar, sendo forçados a voltar a Gibraltar com as caldeiras fazendo água e a aparelhagem de leme defeituosa. Agora o ofereciam a mim, um rapaz de 26 anos que jamais comandara um navio e que só tinha uma carta de comando, porque, durante a guerra, a sorte de ter sobrevivido é mais importante do que possuir experiência.
O S. S. Omega realmente não era nenhuma beleza. Construído pouco antes da Primeira Guerra Mundial, era um cargueiro com o peso total de 3.600 toneladas, já navegara com cinco nomes diferentes e sob bandeiras de quatro países. Capturado pela Marinha Real no começo da guerra, estava há tanto tempo em Gibraltar que ninguém se lembrava de quando chegara. Mas, naquele dia de outubro de 1942, tinha uma oportunidade de voltar à pátria.
Eu estava “encalhado” há dois meses; meu próprio navio fora tão avariado na travessia do bloqueio alemão que nuca mais navegaria Desde meados de agosto, eu rondava as docas à procura de trabalho
“E tripulação?”, perguntei ao funcionário dos Transportes. “Há vários marinheiros ingleses em dificuldades, como você, prontos a embarcar de qualquer jeito com destino à Inglaterra.”
Na verdade, havia centenas como eu em Gibraltar, sobreviventes de navios torpedeados ou bombardeados, disputando a volta à terra. Na realidade, o melhor nome pra aquela tripulação deveria ser “uma salada de marinheiros em apuros.” Da tripulação de 40 homens, dos quais só seis haviam estado no Omega antes, pouco mais da metade era de ingleses. Os outros eram uma mistura de 14 nacionalidades, entre os quais foguistas iugoslavos, grumetes franceses, um copeiro egípcio. O primeiro oficial, um russo branco com passaporte do Panamá, navegara na Marinha Imperial durante a Primeira Guerra e tinha quase 50 anos. Em contraste, Wilkinson e Bulmer, dois aprendizes de meu antigo navio, tinham apenas 18; foram designados como terceiro e quarto pilotos. Ninguém na sala de máquinas jamais tivera um posto de fato, e o primeiro maquinista Foulkes, natural de Liverpool, era oficialmente apenas terceiro maquinista.
Encontrei-o agachado ao lado da portinhola da caldeira, de cenho franzido enquanto estudava o manual da máquina. “Estamos fritos”, disse ele secamente. “Este manual é escrito em romeno.”
“E as caldeiras?”, perguntei.
“Cheias de buracos. Apliquei alguns tampões e revesti a bomba com cimento, mas pode se dar por feliz se ainda conseguirmos desenvolver uma velocidade de seis nós.”
Como provisões, tínhamos lataria e gêneros secos suficientes para uma viagem de cinco dias, o tempo normal de navegação para a jornada de 1.800 milhas de Gibraltar a Glasgow. Para nos defendermos, tínhamos duas metralhadoras Lewis, alguns sinais luminosos e estávamos sendo escoltados por um cargueiro e uma traineira armada. Quando zarpamos a 23 de outubro, minhas preocupações aumentaram, com a rápida queda do barômetro.
Durante aquela noite e todo o dia seguinte, fomos vergastados pro um vento noroeste de 40 nós. No dia 25, ao anoitecer, a portinhola da caldeira começou a fazer água e o Omega, com a força reduzida, caiu sete pontos em seu rumo. À meia noite, quando o vazamento foi tampado, Foules, com os olhos vermelhos de exaustão, veio à ponte de comando comunicar que o cimento em volta da bomba estava quebrando, martelado dia e noite pelo mar.
“Estamos fazendo água rapidamente, comandante”, disse ele, sem forças. “Se eu pudesse diminuir a força...”
“Não pode”, respondi. “Temos de conservá-lo na direção do vento. Mantenha a bomba do porão em funcionamento.”
Não havia mais nada a fazer. Perderíamos a escolta se nos afastássemos do rumo. E se o vento nos forçasse a virar e recebêssemos aqueles vagalhões gigantescos no costado, certamente afundaríamos.
O barômetro continuava a cair. No dia 27, estávamos no centro de um tremendo vendaval na Baía de Biscaia. Ondas imensas, raiadas de branco, se elevavam sobre nós e desabavam sobre a proa. Quase não avançávamos em nosso rumo. Quando ficamos à deriva, sob o impacto do vento e do mar, resolvi improvisar uma vela com uma lona e com a coberta do porão de carga nº 4. Juntos, talvez a máquina enfraquecida e a vela pudessem nos manter contra o vento.
Deu certo. A pequena vela improvisada levou a proa do barco de volta ao rumo. A tempestade continuou a noite toda, mas o velho cargueiro arrebentado, prosseguiu avançando. Por milagre, Foulkes e seus homens, trabalhando freneticamente com água até os tornozelos, conseguiram manter pelo menos uma das suas caldeiras funcionando. Mas, ao amanhecer, ouvimos um barulho, e vimos quando a vela se soltou da popa e desapareceu. Os vagalhões gigantescos pegaram o Omega em pleno costado e quase o emborcaram.
“A estibordo, firme!”, gritei. Lenta e dolorosamente. O Omega obedeceu ao leme e, então, no momento em que virou de bordo, o mar se arremessou de encontro à popa e levou-o a favor do vento. Só podíamos rezar para não sermos tragados.
Ao escurecer, as velhas correntes que controlavam o aparelho do leme se arrebentaram com um estrondo apavorante. Mandei chamar o mestre, um belga de nome Thibermont, que perdera seu certificado de habilitação de mestre por causa da vista e que estava tentando voltar à Inglaterra para um tratamento médico. Enquanto conseguíamos manter o Omega à frente do vento, ele foi ao porão do leme e, com tremenda habilidade, consertou o estrago.
Durante a noite a ventania parou. O dia nasceu com o mar e o céu cinzentos e viramos de novo para noroeste. Mas estávamos a centenas de quilômetros de nossa rota, separados da traineira de escolta e receosos de quebrar o silêncio do rádio, temendo atrair um submarino.
O dia foi longo. No porão, a bomba que mal tinha agüentado a entrada de água, acabou por quebrar-se de todo. Foulkes e sua tripulação adaptaram a bomba principal da circulação para esgotar a água do convés da sala de máquinas. Em breve ficou mais seca do que estivera nos últimos dias.
Esfriou horrivelmente. Para agravar nossos problemas, os gêneros escasseavam e o cozinheiro só podia prometer café e biscoitos para o resto da viagem.
“Basta manter o café quente, cozinheiro”, disse um grumete sueco. “Nós nos arranjamos.”
“Basta manter o café quente” tornou-se uma frase típica e irônica entre os tripulantes.
De manhã cedo, no dia 31, Wilkinson, meu terceiro piloto, avistou um avião baixando sobre nós, voando a cerca de apenas 300 metros. Reconheci logo a silhueta desagradável de um Focke-Wulf, o avião de reconhecimento nazista usado para patrulhar o mar. Avisei o mestre e o quarto piloto para não mostrarem as metralhadoras até eu dar ordem de fogo, na esperança vaga de que pudéssemos ser confundidos com um navio mercante neutro.
Mas os nazistas não se enganaram. Voaram a bombordo examinando-nos de perto, depois se inclinaram lateralmente para voltar e varrer nosso convés com fogo de proa a popa.
Mandei Wilkinson içar o pavilhão vermelho – se íamos afundar, que fosse sob nossa própria bandeira – e chamei Bulmer: “Fique de prontidão perto do foguete. Tomarei conta de uma Lewis.”
Quando o enorme Focke-Wulf voou baixo sobre a proa, a grande extensão de suas asas parecia diminuir o Omega e o ronco dos motores abafava todos os outros sons. Comecei a atirar, Bulmer disparou o foguete e o mestre ergueu a segunda metralhadora Lewis nos braços e abriu uma rajada.
Foi o foguete que resolveu. Vimos o piloto cobrir o rosto quando aquela luz ofuscante explodiu diante dele. Puxou os controles para trás para evitar a armadilha das cordas que pendiam do foguete e, por um momento, pareceu pairar sobre nós. Naquele instante, o mestre e eu despejamos duas torrentes de balas em seu bojo inferior. O motor central a combordo expeliu fumaça e chamas. O fogo se estendeu pela asa. Então, a uns 450 metros do Omega, houve uma explosão horrível e o Focke-Wulf se desintegrou em mil pedaços de ferro retorcido.
Por alguns minutos, só o ronco da máquina do Omega rompeu o silêncio. Alguém gritou: “Conseguimos!” Do tombadilho, o mestre berrou: “On l’a abattu!” e, embora ninguém o entendesse, todos deram vivas.
Com uma sorte incrível, o Omega ainda sobrevivia. Mas por quanto tempo?
Logo estávamos novamente avançando para o norte, a menos de meio caminho da pátria, ainda sós no vasto oceano. Certo de que os alemães teriam irradiado nossa posição antes de atacar, ordenei uma mudança de rota, e pedi mais velocidade ao primeiro maquinista. Ele atarraxou as válvulas de segurança e, por algum tempo, avançamos a quase oito nós. Então, inevitavelmente, a portinhola da caldeira apresentou outro vazamento sério.
“É lá atrás, acima da câmara de combustão”, disse Foulkes, quando desci para investigar. Apagamos o fogo mas devíamos esperar 24 horas para que a caldeira esfriasse antes de se tapar o vazamento.
Mas não tínhamos 24 horas a perder. Em alguma parte, sob aquele mar escuro, eu sabia que um submarino já estava em nossa trilha. Éramos um alvo fácil, de qualquer maneira, e agora, então, com a velocidade reduzida pela metade...
Enquanto eu ficava ali, calado e sem esperança, Foulkes começou a preparar-se para mais um milagre. Colocou uma velha e gasta máscara contra gás, e o pessoal das máquinas o envolveu em trapos; eu, hipnotizado de horror, vi que ele se esgueirava para dentro da abertura em baixo da caldeira.
A despeito da mangueira de água fria que esguichava sobre ele, seu envoltório de trapos se queimava e caía no calor intenso. Todas as vezes que se encostava no metal escaldante, sentíamos cheiro de carne queimada. Não se ouvia barulho algum e depois de um minuto, que parecia não ter fim, Foulkes passou com esforço para uma câmara de combustão interior e calcou um tampão no vazamento. Então começou a voltar. Mas seu corpo inchara com as queimaduras e ele se enfraquecera com os gases venenosos. Na metade do caminho, ficou preso pelos ombros e quadris, lutou fracamente e perdeu os sentidos. Instantaneamente, dois foguistas se atiraram àquele círculo de calor, esticando-se para pegar as mãos de Foulkes, e afinal arrastaram-no daquele inferno.
“Tratem das queimaduras dele”, disse eu. “E dêem a maior velocidade que puderem!”
Já era tarde demais. Quando voltei correndo à ponte de comando, um foguete iluminou a noite como um sol sobrenatural, fixando nosso contorno de encontro ao céu. Quando começou a desaparecer, outro explodiu acima de nós, depois outro e, à distância, um projetor de sinalização expediu a pergunta sinistra: “Que navio é esse?”
“A bombordo, depressa!”, comandei. “Mantenham aqueles foguetes à popa.” E, para a sala de máquinas: “Mais velocidade!”
Por três horas volteamos e viramos, mas não podíamos escapar daquela luz diabólica. Era inútil, e tudo para nada – todo o esforço brutal da minha heróica tripulação, os grumetes gelados e lutando conta todas as probabilidades, os graxeiros suarentos aspirando aquele ar contaminado lá embaixo – tudo para nada. Em alguns minutos, aquele vulto escuro que se aproximava tomaria a forma de um submarino e afundaria o velho navio desmantelado que quase nos levara ao termo da viagem. Exausto, dei ordens de atirarem ao mar os papéis de bordo e os códigos, e de se prepararem para abandonar o navio.
De repente, Wilkinson gritou: “É a nossa escolta!”
Sem poder acreditar, corri para o corrimão. Ali, plantada a 90 metros e nítida à luz de seus foguetes, estava a traineira armada. Pela primeira vez, senti que o Omega chegaria.
Soubemos que a traineira tinha se perdido do outro cargueiro na tempestade e voltara para nos procurar. E – milagre final – sem nada que os orientasse, haviam-nos encontrado naquele mar sem caminhos.
Tomamos outra vez o rumo de casa. Tínhamos pela frente oito dias de viagem dura. Mas, a 7 de novembro, para surpresa de todos que contemplaram o velho cargueiro enferrujado e sua tripulação exausta e meio morta de fome, entramos em Glasgow com nosso próprio vapor. Segundo o diário de bordo, tínhamos coberto mais de três mil milhas.
Infelizmente, o cargueiro em cuja companhia havíamos deixado Gibraltar nunca mais apareceu. Mas o S. S. Omega, consertado e recondicionado, navegou incólume até o fim da guerra. Feio, mas invencível, cumpriu o seu dever.

Por esse feito, o Capitão Gray foi condecorado com a Ordem do Império Britânico. Agora, aos 57 anos, o valoroso comandante é Primeiro Capitão de Porto da Jurisdição Portuária de Porth, na cidade de Edimburgo, na Inglaterra.

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