quarta-feira, setembro 13

Estado de calamidade em Fort Wayne

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autora : Patrícia Skalka

As águas da enchente chegaram a Fort Wayne, Indiana, numa ameaça rapidamente crescente. Alimentados pelas neves derretidas, os três rios da cidade logo transbordaram. Domingo, 14 de março de 1982, as frias águas marrom-escuras com 3m de profundidade haviam desabrigado três mil pessoas. Na terça-feira, o Centro Municipal de Operações de Emergência (CMOE) promoveu a evacuação de mais nove mil dos 173 mil residentes da cidade. Uma chuva forte desabou, então. A enchente refluiu para o sistema de esgotos, arremessando longe as tampas dos bueiros. Diques de terra construídos para conter os rios ficaram encharcados e em breve se tornariam inúteis. Da parte oriental da cidade veio um informe particularmente sombrio: o dique Pemberton estava completamente encharcado.
Dois mil voluntários ajudaram a encher e colocar 100 mil sacos de areia ao longo da borda do rio de Fort Wayne. Um número 10 vezes maior de operários seria necessário para a sobrevivência da cidade. Um recurso continuava a não ser mencionado: os estudantes.
Na noite de terça-feira, o prefeito Win Moses Jr., telefonou para o superintendente das escolas da cidade, que concordou em fechar as escolas ainda em funcionamento, mas devido aos regulamentos de segurança contras riscos, ele não podia solicitar o auxílio dos estudantes. As crianças teriam de vir por vontade própria.
Todos sabiam que a cidade se achava à beira do caos: “E se as crianças não vierem?”, perguntou alguém ao prefeito Moses.

Sete horas da manhã do dia 17 de março, quarta-feira.
David J. Kiester, o homem encarregado dos voluntários do combate à enchente, foi até a escadaria do memorial Coliseum para tomar um pouco de ar. Tinha havido telefonemas frenéticos durante quase toda a noite. Edgewater precisava de socorro. Lawton Park precisava de socorro... as águas da enchente ameaçavam a usina de filtragem da água, as instalações do tratamento de esgotos e a estação principal de transformadores elétricos. Não vamos conseguir sobreviver a uma outra noite como esta, pensou Kiester.
Perscrutou através de uma cortina de neblina e seu coração deu um salto. Mal podia acreditar no quadro diante de si. Um cortejo de ônibus escolares vinha vindo pela estrada principal, em direção ao Coliseum. Um por um, os ônibus entraram no estacionamento, pararam e despejaram uma avalancha de adolescentes. Atrás dos ônibus, fila após fila de carros, caminhonetes e caminhões encostavam, com mais crianças ainda.
“Tem certeza de que está bem?”, exclamou Ruth Baker para a filha, quando ela saltou do carro.
“Estou ótima: não se preocupe”, respondeu Sarah, de 15 anos, que estava convalescendo de uma gripe. Ela acenou e saiu correndo com os seus amigos para o Coliseum.
David Kiester pestanejou sobre as lágrimas dos olhos ao inspecionar o mar de rostos cheios de animação. As crianças tinham vindo, alegres, bem dispostas, ansiosas por ajudar. Talvez consigamos vencer isso, pensou Kester.

Meio-dia de quarta-feira.
Centenas de adolescentes estão reunidos no interior do pavilhão de exposições. Montes de areia se empilhavam no chão. Com entusiasmo, as crianças enchem de areia sacos cor de rosa, verdes e brancos, depois os amarram e atiram dentro de caminhões. Saco após saco, 20 mil por hora! E ainda não era o bastante. David Kiester ordenou a colocação de um monte de areia de 6m no parque do estacionamento. “Quero 75 caminhões carregados de sacos e prontos a qualquer hora.”, disse Kiester. As crianças encheram os 75 caminhões pedidos.
Em meio à lida, uma menina pequena começou a chorar. “Que é que vai ser da minha família?”, exclamava ela. Outra garota, que ela não conhecia, abraçou-a, sentou-a numa pilha de sacos de areia e consolou-a .
Perto de State Boulevard, Mary Zieseniss, de 16 anos, e Beverly Linville, de 15, apressavam-se em direção ao Coliseum. “Isso é a coisa mais emocionante que eu já fiz!”, confessava Mary, enquanto avançavam a custo através de meio metro de água. De repente, Mary avistou uma mulher idosa, parecendo exausta, enquanto se esforçava por acondicionar seus pertences num bote.
“Olhe só aquilo”, disse Mary, passando pelo gramado, completamente alagado, da mulher. “Os diques podem esperar.”
Durante 45 minutos, Mary e Beverly trabalharam junto com a senhora, carregando seu barco, ajudando-a a tomar seu caminho, antes de rumarem novamente para o Coliseum.
Pais preocupados telefonavam para a prefeitura, atrás de seus filhos, que não apareciam em casa.
“Onde você estava?”, reclamou um pai da sua filha de 16 anos, exausta, salpicada de lama. “Estive combatendo a enchente”, disse ela tranqüilamente. Uma hora depois, o pai estava no Coliseum, de pá na mão, para ajudar também. “Vim com a minha filha.” “Vim com o meu filho.” As palavras se tornaram uma ladainha familiar para os coordenadores dos voluntários.
Adultos de carro paravam sempre que viam adolescentes reunidos. “Querem carona?” Vão para onde? Então entrem.”

Tarde de quarta-feira.
A estação de rádio WMEE transmitiu uma mensagem do presidente do conselho de estudantes, Terry Lovejoy: “Estou recorrendo a todos os estudantes de Fort Wayne para ajudar nesta crise”, disse ele. “A cidade está dependente de nós.” Ondas de novos voluntários chegavam, 200 por hora, prontos para a luta.
Os voluntários tinham recebido instruções no sentido de fazerem rodízio nas fileiras e trabalharem dentro de casa a cada duas horas, mas Betty Collins, uma supervisora adulta, viu caminhões e ônibus regressarem dos locais de trabalho com três quartas partes vazias.
“Onde estão as crianças?”, perguntou ela a um motorista.
“Elas não querem vir!”, respondeu o motorista. “Continuam trabalhando.”
Em West Brook, os estudantes ajudaram residentes idosos a livrar seus móveis das ameaçadoras águas da enchente. Surgiu um vazamento em Spy Run e uma legião de adolescentes o consertou. Quando um cano de esgoto explodiu em Perry, uma parte das crianças construiu uma muralha de sacos de areia para conter a água.
Pela primeira vez em quase uma semana, uma margem de segurança se tornou possível em toda parte, a não ser no dique de Perberton. Com cinco quarteirões de extensão, o muro de sustentação retinha uma massa de água com 3,5m de profundidade por 3km de comprimento. Se ele se rompesse, uma vaga destruiria 8km² de casas.
O dique tinha de ser reforçado. De cada lado de uma casa de vigamento de madeira, a apenas 9m da parede do dique, uma fila de adolescentes passava sacos de areia pesando de 20kg a 35kg. Tump, tump, tump. De cada braço para o outro. Pegar. Girar. Jogar para cima. Do caminhão, pela via de acesso, por cima da cerca, através do pátio. Vupt. Para o dique. Os adultos decidiam e interrogavam-se, as crianças trabalhavam.

Quarta-feira, 20:00.
O diretor de transportes da cidade, Carl E. O’Neal, percorreu o dique Pemberton. “Está vazando como uma peneira”, radiografou ele ao EOC. Uma hora depois, ao entrar na sede do EOC, O’Neal ouviu uma frenética comunicação no rádio: “O dique está se movendo!” O”Neal voltou voando a Pemberton. Cansados ou não, os voluntários teriam de reforçar mais o dique.

23:00
A polícia emitiu uma ordem de evacuação aos poucos residentes das proximidades de Pemberton que permaneciam em suas casas. “Estão em perigo iminente. Por favor, saiam imediatamente.”

Meia-noite.
Oitocentas crianças mantinham os sacos em movimento. “Este é pesado. Este é leve. Não pára!”
Enquanto o prefeito Win Moses avançava com água pelo tornozelo, em frente ao dique, um garoto de oito anos passou cambaleando. Segurava um saco de areia com as duas mãos, puxando-o . “Sr. Prefeito”, disse um homem, “olhe só o meu filho. Semana passada, nem o lixo ele queria tirar...”
Quinze fileiras de adolescentes removiam agora 25 sacos de areia por minuto cada, criando uma muralha de emergência em frente ao encharcado dique de terra. E trabalhavam cantando “Oh When the saints go marching in...” Cantando!
Cantavam para tocar para frente com ritmo, para manter os sacos de areia em movimento, sem parar. Cantavam para vencer. Cantavam porque é da natureza dos jovens voltar ao perigo uma face de bravura.

14:00 Quinta-feira, 18 de março.
O dique de Pemberton estava cedendo. Um buraco de 1m de largura se abria no dique. Um quarteirão ao norte, mais outro. A água vazava.
As sirenes e as buzinas da polícia trespassavam a escuridão. “Tirem todos daqui! Evacuem agora! Todos os voluntários saiam da área.”
“Queremos ficar”, insistiu Brett Thomas, de 18 anos, do penúltimo ano do ginásio. “Somos capazes de enfrentar isto.”
Um grupo de adolescentes, de rostos enlameados, conferenciaram entre eles e votaram contra a desistência. Ficaram parados junto a um caminhão vazio, recusando subir nele. “Vamos esperar. Vamos só esperar para ver.”
De algum modo, graças ao deslocamento de terra, graças aos sacos de areia furiosamente arremessados mas bem colocados, os buracos foram fechados. As torrentes se tornaram fios de água. Do comando, veio uma comunicação: “Se os voluntários querem ficar – façamos uma tentativa.”
As crianças trabalharam a noite inteira. Vagarosamente, a muralha de sacos de areia começou a tomar forma. Crescia mais alta e mais larga a cada hora, espalhando-se em torno de troncos de árvores, subindo em direção as casas e ocupando abrigos de carros e garagem.
Os voluntários não se importavam com braços e costas doloridos, mas a previsão de chuvas os preocupava.
“Se chover, tudo estará perdido.”
“Não podemos desistir!”
“Que poderemos fazer?”
“Rezem para que os sacos fiquem mais leves”, disseram eles rindo.

Madrugada de quinta-feira.
Reforços de adolescentes chegavam ao Coliseum. “Meu trabalho é na barragem”, cantavam eles, enquanto amontoavam areia nos sacos e esperavam sua vez para trabalhar nos diques. Em meio à manhã, cinco mil voluntários apinhavam-se ali, e mais continuavam chegando. Em Pemberton, 1.500 estudantes prosseguiam o trabalho iniciado pela indomável multidão da noite anterior. Sua represa se elevava, quase 3m de altura em alguns lugares e 4,5 de espessura. “Vamos vencer ou perder em Pemberton”, disse o prefeito Moses à cidade.
Em meio a um descanso do enchimento de sacos de areia, o diretor do ginásio de North Side, Daniel G. Howe, viu dois meninos que ele mesmo expulsara por má conduta. Ouvira dizer que se tratava de crianças que não ligavam para coisa alguma. No entanto, ali estavam elas, trabalhando duro.
“Não são formidáveis essas crianças?”, observou um homem.
“Sempre foram”, disse Howe. “É que as pessoas nunca lhes deram a oportunidade de comprova-lo.”
Naquela noite, o rio Maumee subiu a 7,90m; 5cm abaixo do limite mais elevado estabelecido em 1913. a represa de sacos de areia de Pemberton também crescia. Mias de 3m, 3,5m. Finalmente, umas 27 horas após ter começado o monumental trabalho, a tarefa estava cumprida. Às 2:00 da manhã, Mark Meister, presidente da National Honor Society do ginásio de Concórdia, arremessou o seu último saco de areia do dia. A não ser por um descanso de duas horas, ele estava trabalhando na represa desde as 7:00 da manhã anterior. Agora, coberto de lama, exausto, ele mal podia acreditar no que ouvia: eles podiam ir para casa!
A represa auxiliar estava terminada. Elevava-se a quase 4m de altura, media 9m de um lado a outro, e estendia-se por cinco quarteirões. Cada um dos seus 300 mil sacos de areia fora enchido, amarrado, arremessado e empurrado no lugar a mão. Era espantoso.
Mas ele resistiria?

Sexta-feira, 19 de março.
A chuva caía. Os voluntários encheram mais sacos de areia, observaram a chuva cair e aguardaram.
Ao meio-dia, ainda chovia, mas a represa resistia. Às 17:00, chegou a notícia de que o rio Maumee descera para 7,28m, e a represa ainda agüentava.
O departamento meteorológico emitiu uma nova previsão. Não havia expectativa de mais chuvas.

Sábado, 20 de março.
Fort Wayne voltou ao trabalho como de costume. Ao todo, se estimava que umas 50 mil pessoas haviam aderido ao esforço de controle da enchente, quase 30 mil delas estudantes. A certa etapa, oito crianças da família Hewett, de idades entre 12 e 28, tinham trabalhado nos diques com o seu pai, Gene. Rachel, de 15 anos, trabalhara 52 horas.
Na represa de Pemberton, um general do Corpo de Engenheiros do Exército inspecionou o trabalho dos estudantes. Posteriormente, comentou com Carl O’Neal que as crianças em Fort Wayne haviam realizado um milagre de engenharia.
“Elas fizeram o impossível”, disse o general. “Fizeram o que não era possível ser feito!”
Carl O’Neal chorou.

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