sábado, setembro 2

Resposta ao cair da noite.

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1970
Autor : Arthur Gordon (condensado de Family Circle)

Por que você tinha de morrer? – perguntou a menina. E aí veio a compreensão.

Algumas vezes penso, um pouco preocupado, que um pai não pode ensinar aos filhos nada realmente importante; o que se pode fazer é expô-lo à vida. Dessa maneira as lições vem tão suave e despercebidamente que muitas vezes não nos damos conta delas, até que começamos a relembrar.
Ontem, por exemplo...
Nós estávamos retornando, os quatro, de uma hora de pescaria ao entardecer. Nosso barquinho rolava facilmente pelas ondas, sarapintado de dourado na luz mortiça. À nossa esquerda, as dunas baixas da costa. À direita, nada além de pássaros, mar e céu, e de vez em quando os lampejos das cavalas saltando. Normalmente seríamos cinco no barco. Mas Dana, nossa filha de 14 anos, preferiu ficar em casa com um filhote de guaxinim que ela tinha arranjado, não sei como.
- Tenho de preparar a mamadeira dele – disse ela. – Além do mais, ele guincha quando eu me afasto.
Eu decidi desembarcar a minha tripulação – uma esposa e dois filhos – e deixa-los irem a pé para casa enquanto eu levava o barco para o seu ancoradouro numa enseada. Ao nos aproximarmos da praia, vi um pelicano na areia perto da água, encolhido e imóvel. Ele ficou nos olhando enquanto nos aproximávamos, mas não fez menção de voar.
- Aquele pássaro não parece muito feliz – disse eu, e não pensei mais no assunto, até que cheguei a casa, depois de atracar o barco.
Ao pé da escada da casa, de cabeça pendida, asas meio abertas, estava o pelicano. Ao redor dele estavam as silhuetas preocupadas dos membros da minha família – inclusive Dana, agachada, os cabelos louros caídos sobre o rosto e os braços protetoramente rodeando o pescoço da ave. Ela olhou para cima, seus olhos cinzentos nublados.
- Oh, Papai – disse ela – o que é que há com ele? Ele não pode voar, mal pode andar e está tremendo.
Eu resisti ao impulso de dizer que fosse lá o que houvesse com ele, uma família de oito gatos, um poodle e um filhote de guaxinim não precisava de mais problemas com animais. Minha mulher, como sempre, leu meus pensamentos.
- Nós não poderíamos largá-lo ali – disse ela calmamente.
- Nós o carregamos até aqui – disse o caçula, todo prosa. – Eu carreguei a cabeça e parte do pescoço, e ele nem tentou me morder!
Olhei para o grande bico com um gancho na ponta, tão leve e no entanto tão forte, e pensei – não pela primeira vez – como era estranho e maravilhoso que uma criatura tão grotesca pudesse ter um momento de beleza fulgurante: na última fração de segundo do seu mergulho, um pelicano-pescador dobra suas asas desengonçadas e fende a água como um javali correndo, todo graça, força e precisão. Mas eu pressentia que esse pássaro não conheceria mais esses momentos.
Passei minha mão pelas sedosas penas do pescoço. Não senti nenhuma obstrução. O pássaro hesitou um pouco, deu alguns passos em falso e de repente parou, os olhos amarelos olhando-nos vagamente.
- Talvez seja bom chamar o veterinário – disse eu.
- Nós já chamamos – disse minha mulher. – Ele disse que a única coisa que poderíamos fazer por hoje era dar-lhe água e observá-lo.
- Ele não quer água – disse Dana com tristeza. – Nem pão. Eu lhe ofereci um pouco.
Oferecemos peixe, que foi ignorado. Despejamos um pouco de água pelos cantos do bico, sem encontrar resistência. Ele não parecia ter medo, mas de vez em quando tremores convulsivos corriam pelo seu corpo.
- Oh! Ele está com frio – lamentou Dana, e passou uma toalha de banho carinhosamente em volta dele.
O Sol se pôs num manto de vermelhos. Os outros finalmente foram para dentro jantar, deixando Dana e eu a sós com o pássaro. Lá fora sobre o oceano, procurando seus lugares de repouso, longas filas de pelicanos faziam uma curva pelo céu e eu pensei em se aquele preso em terra tinha conhecimento deles.
- Vamos leva-lo de volta para a água – eu disse para Dana. – Quando ele vir todos os seus amigos indo para casa, talvez tente ir com eles.
Com Dana carregando o enorme pássaro passivo, descemos até ao cais e passamos pelas dunas, através da praia deserta. A maré estava baixando; as ondas mostravam tons metálicos à luz pálida. Quase sobre nós agora as asas silenciosas passavam rapidamente. Dana caminhou na água até à altura dos tornozelos. Eu fiquei olhando enquanto ela desprendeu a toalha e baixava o seu fardo. E foi muito estranho: como se fosse por sinal, no instante em que os pés espalmados tocaram a água, algo foi libertado, algo se acabou. Sem um som, a cabeça grande e desajeitada tombou dentro das ondas.
- Traga-a de volta, querida – disse eu brandamente. – Ele esta morto.
Ela o trouxe e depositou-o na areia. Parecia menor, quieto, imóvel. Ela ajoelhou-se ao lado dele, com lágrimas rolando pelo rosto.
- Oh – exclamou ela numa voz angustiada – por que você fez isso? Por que tinha de morrer?
O vento soprou, as ondas se aproximaram e a pergunta ficou no ar como tem ficado desde o princípio dos tempos.
- Não fique triste – eu lhe disse por fim. – Ele sabia que nós estávamos tentando ajudar.
Ela deu um longo suspiro e enxugou os olhos com as costas da mão. E olhou para cima para a grande procissão que voava:
- Você acha que alguns de seus filhos estão lá em cima?
- Provavelmente. Filhos, netos e bisnetos.
Ela concordou lentamente, olhos sombreados pelo mistério e milagre da morte e da vida. Estendeu a mão mais uma vez e acariciou suavemente as penas molhadas.
- Podemos enterrá-lo agora?
Nós o enterramos aos pés das dunas onde as melancólicas ervas marinhas olhariam por ele. Moldei um túmulo e coloquei alguns pedaços partidos de concreto em cima. As marés nunca chegariam ali.
No cais nós olhamos para trás, para onde o concreto sobressaía. Aí Dana falou baixinho – comigo ou consigo mesma?
- Ele está de volta aonde queira estar, não está? E continua a ser parte de tudo aquilo, não é?
As estrelas começavam a aparecer; o mar estava escuro; os pássaros se perderam na noite que se formava. Minha filha tomou minha mão com uma firmeza adulta.
- Vamos para casa agora – disse ela – tratar de alimentar aquele guaxinim faminto.

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