sábado, setembro 9

Cão que ladra...

Fonte : Revista Seleções
Data : janeiro de 1980
Autor : James Herriot

O conhecido veterinário britânico encontra um collie travesso, com resultados surpreendentes.

Pensando bem, que criatura com sendo de humor o Shep, o cachorro do Sr. Bailes! Era um cão enorme, muito maior que um collie comum. Tinha pêlo abundante, preto e branco, e havia algo de impressionante naqueles membros maciços e na cabeça nobre, meio marrom e de orelhas em pé.
Uma tarde, o Sr. Bailes me chamou à casa dele, que ficava a meio caminho de Highburn Village. Para chegar ao pátio do seu sítio, tinha-se de andar uns 20m entre muros de 1,5m de altura. À esquerda ficava a casa do vizinho; à direita, o jardim da frente da sua casa. Em geral Shep ficava por ali rondando no jardim.
Enquanto eu seguia entre os muros, ia pensando numa das vacas dos Bailes, chamada Rose. A rês tinha começado a grunhir, e seu leite a diminuir há dois dias. Prisão de ventre? Talvez uma torsão parcial do intestino? Não havia dúvidas de que ela estava com dores abdominais; e mais aquele calor danado de 39º C.... Eu lhe dera um purgante forte, oleoso. “Conserve os intestinos desobstruídos e confie em Deus”, aconselhara-me um dia um colega idoso. Havia muita sabedoria nisso.
Eu estava no meio da passagem entre os muros, quando, sem saber de onde, um barulho terrível explodiu no meu ouvido direito. Era Shep. O muro ali tinha justamente a altura certa para o bicho dar um salto e latir dentro do ouvido de qualquer incauto.
Dei um pulo dos diabos e, quando pisei a terra de novo, com o coração saltando pela boca, olhei furioso por sobre o muro. Mas só vi um vulto peludo afastando-se, aos pinotes. Aquele foi por certo o pior susto que já levei na vida.
Depois disso fiquei na melhor das formas para receber más notícias – exatamente o que me esperava no estábulo. Bastou olhar para a cara do fazendeiro para ver que a vaca tinha piorado.
“O purgante não deu jeito”, disse eu ao Sr. Bailes. “Vamos ter de tentar uma coisa mais forte.” Fui buscar no carro um equipamento para lavagem gástrica – um comprido tubo de borracha, uma mordaça de madeira e tiras de couro para prender por trás dos chifres – e bombeei nove litros de água morna cheia de formalina e cloreto de sódio no animal. Se aquilo não desse certo, nada mais daria.
Voltei ao carro pelo caminho mais comprido, atravessando um campo de capim alto. O sol estava muito quente e cada passo me fazia sentir a fragrância dos trevos e do capim quente que se erguia em volta de mim; e o silêncio era a coisa mais calmante de todas.
Aí, sem qualquer aviso, o chão sob meus pés explodiu num horrendo barulho. Por um momento terrível, o céu azul foi obscurecido por um imenso vulto peludo, e uma boca vermelha se escancarou num UUUAAAU! na minha cara. Apavorado, recuei, cambaleando, e vi Shep desaparecer rapidamente em direção ao portão. Escondido no meio do mato rasteiro do campo, ele tinha esperado até ver os meus olhos. Do ponto de vista dele, a emboscada deve ter sido muito satisfatória.

Dois dias depois tornei a volta a Highburn. Deixei o carro do lado de fora do sítio e já ia entrando pela passagem entre os muros, quando parei para olhar para uma vaca no pasto do outro lado da estrada. Era Rose. Tinha melhorado milagrosamente! Aproximei-me dela e cocei-lhe a base da cauda. Enquanto uma onda de alívio me inundava, vi o Sr. Bailes, que saltava o muro, vindo do outro pasto.
“Ah, bom dia, Sr. Bailes”, disse eu, expansivo. “Rose hoje parece estar ótima, não?”
O fazendeiro tirou o boné e enxugou a testa.
“Ah, é outra vaca, sim senhor!”
“Não creio que ela precise de mais tratamento”, disse eu, “mas foi bom eu ter feito aquela lavagem.”
“Aquele negócio da bomba?” – o Sr. Bailes ergueu as sobrancelhas. “Aquilo não teve nada a ver com a coisa.”
“Não teve? Que é que você quer dizer? Estou certo de que foi isso que a curou.”
“Não, rapaz, foi o Jim Oakley quem a curou.”
“Jim.... mas o que...?”
“É, o Jim esteve aqui ontem à noite. Ele costuma vir aqui de noite. Ele olhou para a vaca e me disse o que fazer. Disse que um bom galope pelo pasto havia de cura-la. Então levamos Rose para o pasto e fizemos o que ele disse, e, por Deus, isso a curou!”
Eu me empertiguei.
“E quem é esse Jim Oakley?”, perguntei friamente.
“É o carteiro, homem!”
“O carteiro!”
“É, mas há alguns anos ele tinha uma criaçãozinha. Jim é muito jeitoso com o gado.”
“Sem dúvida, mas posso garantir-lhe, Sr. Bailes...”
O fazendeiro ergueu uma das mãos.
“Não me diga mais nada, rapaz. Foi Jim quem a curou, e não há como negar.”
Eu estava farto. “Bom, tenho de ir andando”, disse-lhe. Enquanto atravessava o pasto, a injustiça cruel do caso cada vez me pesava mais. Fui andando como num sonho.
Ia passando pela porta da cozinha do sítio, quando, da minha esquerda, de repente ouvi um barulho de corrente. Então um monstro se lançou sobre mim, berrou uma vez, com força, na minha cara, e desapareceu.
Desta vez achei que o meu coração ia parar. Eu me esquecera de que, de vez em quando, a Sra. Bailes prendia Shep no canil. Encostei-me ao muro, o sangue trovejando em meus ouvidos. Olhei obtusamente para a corrente comprida sobre as pedras.
Aí alguma coisa estalou em minha cabeça. Toda a minha frustração estourou numa torrente de gritos incoerentes. Agarrei a corrente e comecei a puxa-la freneticamente. O canil devia estar a uns 3m dali e a princípio só senti o peso morto na ponta da corrente. Depois, enquanto eu puxava, apareceu um nariz, depois uma cabeça, depois todo o grande animal pendurado frouxo da coleira.
Fora de mim, de raiva, agachei-me, sacudi o punho debaixo do focinho dele e berrei: “Seu bestalhão! Se fizer isso de novo comigo, eu lhe arranco esse raio de cabeça!”
Shep olhou para mim assustado, rolando os olhos, e o rabo se meteu entre as pernas, desculpando-se. Continuei a berrar, e aí ele mostrou os dentes superiores num sorriso de agrado, acabando por rolar de costas, pondo-se imóvel, de olhos fechados.
Então foi que percebi tudo. Ele era um molenga. Seus ataques ferozes eram apenas uma brincadeira. Comecei a acalmar-me, mas ainda queria que ele entendesse. “Certo, meu chapa”, acrescentei, num cochicho ameaçador. “Lembre-se do que eu lhe disse!” Larguei a corrente e dei um grito final. “Lá para dentro!”
Shep, quase de rastos, o rabo tocando a barriga, correu para o canil.

Fiquei surpreso, certa de um mês depois, ao receber novo chamado para ver outra vaca do Sr. Bailes. Achava que, depois de minha atuação no caso Rose, ele havia de preferir os serviços de Jim Oakley... Mas não, a voz dele no telefone era cortês e simpática como sempre.
Deixando o carro do lado de fora do sítio, olhei desconfiado para dentro do jardim da frente antes de me aventurar entre os muros. Um leve barulho de metal me mostrou que Shep estava ali, à espreita, em seu canil. No fim da passagem parei, à espera, mas só via ponta de um focinho que se escondeu, prudentemente, enquanto eu estava ali. Portanto a minha explosão com ele dera resultado.
No entanto, no caminho de volta da consulta, não me senti bem com aquilo. Tinha a sensação incômoda de tê-lo privado de seu maior prazer. A idéia de que eu tinha arrancado algumas coisa da vida daquele cão era perturbadora.
Mais tarde, naquele verão, eu ia passando de carro por Highburn, quando vi uma coisa que me fez parar, expectante, do lado de fora do sítio dos Bailes. A rua da aldeia, branca e empoeirada, dormitava ao sol da tarde. No silêncio abafado nada se movia – a não ser um homenzinho que andava em direção à abertura entre os muros. Gordo e muito escuro, era um consertador de panelas de um acampamento fora da aldeia, carregando uma porção delas consigo.
De onde eu estava, pude ver Shep esgueirando-se, em silêncio, para sua posição por trás do muro. Fascinado, fiquei olhando. Enquanto o homem entrava sem pressa na passagem, o cão o acompanhava com a cabeça por cima do muro.
Tal como eu esperava, a coisa aconteceu quando o homem estava a meio caminho. O salto perfeitamente cronometrado, o tremendo UUUUAAAAUU!
Vi, rapidamente, braços agitados e panelas voando, acompanhados de um prolongado som de metais. Depois o homenzinho reapareceu como uma bala e fugiu pela rua. Só parou quando sumiu dentro de uma loja, no outro extremo da aldeia.
Shep, satisfeito, jogou-se numa sombra fresca, a cabeça sobre as patas, esperando confortavelmente sua próxima vítima.
Sorri sozinho. Ia parar na loja e dizer ao homenzinho que ele podia apanhar suas panelas sem o menor receio de ser esquartejado, mas minha emoção mais importante foi sentir que não havia apagado a alegria da vida do canzarrão.

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