segunda-feira, maio 8

Ama o teu próximo

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1973
Autor : Raul Váquez de Parga

Como um engraxate espanhol arrecadou mais de três milhões de pesetas para os necessitados, usando pouco mais que suas próprias mãos – dando, com isso, um exemplo para todos

Embora o Natal estivesse chegando, e a alegria reinasse em quase todos os lares, havia só desespero no casebre de Aquilino Garcia Fonseca. Garcia era um mineiro de carvão, de 50 anos, que tinha se recolhido ao leito há três anos, atacado pela tuberculose e com uma misteriosa doença circulatória, que interrompia a corrente sanguínea em suas pernas, sempre que ele se levantava. Passava os dias olhando, pela única janela do quarto, para os tijolos da casa de um vizinho. Com a pensão insignificante de 4.125 pesetas por mês, para manter uma família de quatro pessoas, não tinha recursos nem para trocar por um novo o seu velho e barulhento rádio-transistor, que só pegava uma estação local.
Profundamente tristes com a situação do pai, as filhas de Garcia, Noelia, de 14 anos, e Adaflor de 11, decidiram recorrer ao único homem que as poderia ajudar: Rodrigo Alvarez Vázquez, o “mineiro engraxate”, de Sama de Langreo. Tinham ouvido no rádio que Rodrigo engraxava sapatos nas horas vagas, e empregava tudo o que ganhava ajudando os pobres. Numa carta semelhante àquelas que as crianças do país escrevem aos Reis Magos, disseram a Rodrigo: “Nossa maior necessidade é a de um aparelho de televisão para distrair nosso pai, que está doente. Poderá nos ajudar, por favor?”
A 6 de janeiro de 1972, o Dia de Reis e de dar presentes, bateram à porta. Então, as meninas entraram pulando no quarto do pai, exclamando: “Está aqui! Está aqui!” Enquanto o doente acamado olhava espantado, entrou um estranho carregando um aparelho de TV, novo em folha, com tela de 24 polegadas. “Vamos alegrar um pouco este lugar”, gritava animadamente Rodrigo Alvarez. “Dizem que a televisão é uma janela para o mundo.” Naquela noite, uma alegria contagiante encheu, mais uma vez, um lar há muito mergulhado em melancolia.
Gestos como este têm feito de Rodrigo Alvarez, de 39 anos, uma lenda viva do enfumaçado e industrial Vale Nalón. No entanto, ele não é um filantropo abastado, mas um ex-mineiro que trabalha arduamente para se manter. Seis dias por semana, Rodrigo perambula pelo vele, supervisionando a manutenção das casas de cinco mil mineiros administrados por seu empregador, o consórcio Hunosa, controlado pelo estado. Este é o seu trabalho, desde 1968, depois de 20 anos empunhando uma picareta, nas galerias de carvão sob o vale, onde contraiu silicose. (A silicose ou “pulmão preto” é causada por partículas diminutas de silício, que se misturam à poeira do carvão, e aderem permanentemente aos pulmões, prejudicando seu funcionamento).
A despeito deste inconveniente, Rodrigo tem dado mais de três milhões de pesetas em dinheiro e presentes aos doentes, pobres e velhos do vale, em oito anos de auto-sacrifício. Os necessitados recebem dinheiro que lhes permite sair de dificuldades. Velhos solitários encontram cestas de Natal à sua porta, e donativos generosos tem sido feitos aos asilos e orfanatos do vale, e também às grandes instituições, como a Cruz Vermelha e a Campanha contra o Câncer.
A carreira de Rodrigo Alvarez começou há 12 anos, no Bar Quirós, uma taberna de trabalhadores de Langreo. O engraxate regular do bar, Valentin Fernández Canal, de 49 anos, ganhava duas pesetas por graxa – que mal davam para alimenta-lo e à esposa e duas filhas, de oito e doze anos. E, o que era pior, o engraxate sofria de uma séria moléstia do fígado. Um dia, quando Fernández estava muito doente para trabalhar, Rodrigo arregaçou as mangas, e pegou a caixa de graxa num canto do bar. “Aquele homem precisa de todas as pesetas que puder ganhar”, disse ele, “e olhem quantos sapatos sujos aqui!”
Impressionados com a atitude resoluta de Rodrigo, os fregueses do bar, mineiros e empregados de fábrica, fizeram fila para engraxar os sapatos. Quando Rodrigo se levantou do banco, quatro horas depois, a féria do dia era de 210 pesetas, duas vezes mais do que o engraxate doente ganhava em seus melhores dias, e ninguém deu menos que um duro (cinco pesetas). Naquela noite, o grupo do bar seguiu Rodrigo até a casa de Fernández. Quando a mulher, cansada e apreensiva, abriu a porta, Rodrigo entrou, e lhe deu o dinheiro. Ela escondeu o rosto nas mãos, e chorou.
Mais tarde, Fernández ficou permanentemente acamado, e Rodrigo se tornou o único arrimo de família. Engraxava sapatos à noite, nas manhãs de domingos e feriados, e lhes dava os lucros.
“Meu trabalho é gratuito”, dizia Rodrigo a seus fregueses. “Depende de vocês fornecerem o dinheiro!” Cada freguês estipulava o preço de sua graxa, e depositava o dinheiro numa lata para troco, guardada numa gaveta da cadeira do engraxate. Os fregueses do bar concordaram plenamente, e tinham orgulho de fazê-lo.
Quatro anos depois, em 1964, quando Fernández morreu e sua mulher emigrou para a França com as meninas, Rodrigo decidiu continuar engraxando sapatos. Daí em diante, os lucros iriam para qualquer necessitado.
Rodrigo é um homem rude, afável, que gosta de cidra, futebol e de contar lorotas aos companheiros. Se bem que tenha engordado ultimamente, seu férreo aperto de mão e os ombros largos demais para sua estatura de 1,67 m, são boas provas de seu passado de mineiro. Com estranhos, é homem de poucas palavras, e raramente deixa transparecer qualquer emoção. De sua silicose, costuma dizer, brincando: “Só me incomoda quando corro. Mas, quem quer correr?”
As pessoas que Rodrigo mais ajuda são as mais idosas do vale e cerca de três mil mineiros incapacitados. Algumas dessas pessoas vivem de pensões extremamente baixas. “Há tantas pessoas necessitadas”, diz ele, “que nunca se pode ajudar o bastante. Eu simplesmente tento... é tudo o que posso fazer.”
É mais do que a maioria de nós faz. Para o pároco católico-romano de Langreo, Padre José Luis Ortiz, “Rodrigo é um verdadeiro cristão: vive de acordo com o novo mandamento – Ama o Teu Próximo”. Um vereador da cidade diz: “Para mim, Rodrigo vai muito além do milionário benfeitor que assina cheques. Ele se abaixa no chão com uma escova de sapatos, e faz caridade com o suor de seu rosto.” O Prefeito Antonio Garcia Lago acrescenta: “Rodrigo é um exemplo para todos os cidadãos.”
Sua mulher, Nélida, admite que poderia usar algum dinheiro extra nas despesas da casa e na educação do filho Secundino, de 16 anos. Mas não reclama. “Rodrigo é um homem bom, e eu me orgulho dele”, diz.
Rodrigo nasceu em Langreo, em ambiente de pobreza completa. Seu pai, mineiro que morreu em conseqüência da silicose, aos 53 anos, ganhava menos que o salário de subsistência. Ir à escola era um luxo inatingível (Rodrigo aprendeu finalmente a ler e escrever, aos 31 anos) e, desde os seis anos, trabalhava como menino de recados em troca de gorjetas. Aos nove, já trabalhava dia e noite, como engraxate, nos bares e nas ruas e, três anos depois, pôs sua caixa de engraxate debaixo do braço, e saiu de casa para perambular pelas províncias do Norte.
Aos 15 anos, voltou ao Vale Nalón e às suas minas. Como um guaje (aprendiz), o magricela Rodrigo ganhava oitos pesetas por dia. Raramente tinha dinheiro para comer. Mas alguns homens mais velhos, sabedores de sua pobreza, lhe davam pedaços de seus sanduíches de sardinha. “Foi nas minas”, diz ele, “que aprendi o quanto todos precisamos do auxilio uns dos outros.”
Foi esta lição que ele começou a pregar mais tarde, dia após dia, no Bar Quirós, com a eloqüência de suas escovas. Ao mesmo tempo, a Radio Juventud de Astúrias anunciou que um engraxate do Bar Quirós gostava de ajudar o próximo. E, pouco a pouco, o grupo de 40 fregueses de Rodrigo se expandiu, ganhando centenas de fregueses ocasionais. Um comerciante de Oviedo, por exemplo, atravessou de carro os 24 quilômetros, até Langreo, apenas para engraxar os sapatos. E deixou duas mil pesetas na caixa de dinheiro.
“As pessoas sempre confiaram em Rodrigo”, diz Rufino Suárez, um dos primeiros fregueses do engraxate. “Elas sabem que suas doações vão diretamente para a caridade, exatamente como ele diz.”
A maior parte do auxílio prestado por Rodrigo tem sido modesto, mas, em certas ocasiões, ele realmente despende grandes somas. Sua maior campanha data de um fato trágico, ocorrido a 3 de outubro de 1970. naquele dia, um trem de passageiros passava pela cidade de El Entrego, a quatro quilômetros de Langreo, no momento em que Aquilino Antunã, de 16 anos, e seu irmão Maximiano, de 14, iam em suas bicicletas pela faixa de terra entre os trilhos. Quando Aquilino percebeu o trem, este já estava muito perto. Devido ao medo, ou à vibração desequilibrou-se e começou a cair. Tentando se equilibrar, estendeu os braços e, acidentalmente, empurrou o irmão, atirando-o para longe do trem e salvando sua vida. O movimento, porém, fez Aquilino cair... sob as rodas. O trem passou por cima de suas pernas.
Duas amputações nos quadris deixaram Aquilino (um entregador de mercearia de Langreo) apenas com o tronco. Mas os médicos disseram que, mesmo nessas condições, o menino poderia voltar a andar, se provido de dispendiosas pernas artificiais, movidas eletronicamente.
Quando Rodrigo visitou Aquilino, quatro meses depois do acidente, o menino já podia sentar numa cadeira de rodas. Rodrigo se comoveu profundamente com o espírito de Aquilino depois de três operações. “Você terá aquelas pernas”, disse Rodrigo “mesmo que eu tenha de engraxar sapatos noite e dia!”
Rodrigo, todavia, logo compreendeu que só uma grande campanha de caridade poderia fornecer as centenas de milhares de pesetas necessárias. Com a ajuda da Rádio Juventud, promoveu um jogo de futebol entre as duas equipes locais. Seis mil espectadores, pagando um mínimo de 25 pesetas pela entrada, compareceram. Era um bom começo, mas onde encontrar o resto do dinheiro necessário?
De brincadeira, um amigo sugeriu a Rodrigo: “Por que não pede a Victor Manuel para cantar de graça?” Victor Manuel, um famoso cantor de música pop, da vizinha cidade de Mieres, passara por Lngreo há algum tempo, e dera 200 pesetas a Rodrigo. Quando dois amigos de Rodrigo o procuraram e lhe pediram que fizesse um espetáculo para angariar fundos para as pernas artificiais de Aquilino, ele concordou. O resultado foi o maior festival de música realizado no vale. Cerca de 750 pessoas, na maioria adolescentes, encheram o Teatro Pilar Duro, de La Felguera, numa noite de abril, em 1971. depois de pagar os empregados e o aluguel do teatro, Rodrigo tinha mais de 50 mil pesetas para as pernas artificiais.
No total, a campanha para as pernas de Aquilino arrecadou 742 mil pesetas, ao terminar, em julho do ano passado, o suficiente para adquirir o melhor aparelho existente.
A notícia deste ato tão raro se espalhou pelo país. O Diretor Geral do Trabalho, Vicente Toro Orti, colocou pessoalmente em Rodrigo a cobiçada Medalha do Trabalho, numa cerimônia em Oviedo. Pousos meses depois, Rodrigo Fez uma visita ao Santuário de Nossa Senhora de Covadonga. Queria deixar à Virgem algo que lhe fosse caro, como uma lembrança por seu “apoio moral”. Colocou a Medalha do Trabalho a seus pés; e lá permaneceu.
Durante todo este tempo, Rodrigo manejou sua escova de sapatos. Quando visitei o Bar Quirós, numa recente manhã de domingo, ele chegou para trabalhar 20 minutos atrasado, e foi saudado com os resmungos bem humorados de seus fregueses que o esperavam para engraxar. Quatro horas depois, 30 pares de sapatos tinham sido lustrados. Um grupo de pessoas se reuniu quando a caixa do dinheiro foi aberta. O total do dia: 1.575 pesetas. Rodrigo verificou um quadro na parede, que mostrava o saldo credor para um aparelho de TV a ser doado. “Rapazes”, anunciou ele, sorrindo orgulhosamente “completamos mais outra prestação!”

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