quinta-feira, maio 11

Uma lição insquecível

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1979
Autor : Fred Bodsworth

Desde que crianças e cães se conheceram, suas vidas se entrelaçaram felizes. Pessoalmente, porém, jamais consegui olhar para um menino e um cachorro, juntos, sem me lembrar emocionado de Carson West e sua Daisy. Daisy era uma vira-lata preta e castanha, de orelhas rasgadas, patas grandes e um olhar eternamente tristonho. Creio que seu sangue era principalmente bigle, mas estou certo de que havia muitas outras raízes em sua árvore genealógica.
Carson West, dono de Daisy, era um menino magricela, de braços e pernas compridos, o cabelo ruivo e desgrenhado que crescia em profusão por debaixo do boné, numa época em que cabelo comprido era uma vergonha e um escândalo.
Acho que Carsy teria uns 12 anos – e eu uns 10 – quando ele foi morar com a avó nos confins da cidade onde me criei. Hoje em dia, Carsy seria chamado de “criança carente”, mas naqueles princípios da década de 1930, ele era apenas “aquele mau elemento filho dos West”. Quando não estava no colégio, o que acontecia com freqüência, perambulava pelas matas com Daisy, sempre carregando debaixo do braço o seu rifle calibre 22. Atirava em tudo em que conseguia pôr os olhos.
Meus pais achavam que Carsy tinha um desejo cruel de matar, mas hoje reconheço que ele matava porque tinha uma curiosidade intensa que não poderia satisfazer-se de outra maneira. Para saber por que motivo um guaxinim deixava um rastro diferente do de um rato almiscarado, Carsy precisava comparar as patas dos animais. E por isso atirava neles. Para saber de que maneira um pica-pau conseguir agarrar-se a uma árvore sem cair, tinha de recorrer à arma, pois não possuía livros que o informassem, e tudo isso eram coisas que Carsy tinha um desejo irresistível de saber.
Teria bastado uma palavra paternal, qualquer mão amiga no ombro, para reorientar a curiosidade de Carsy, explicando-lhe que, embora seu objetivo fosse bom, o método estava errado. Carsy, porém, não tinha pai para encaminha-lo. Foi Daisy, a medíocre cadelinha de caça também assassina e caçadora, que finalmente lhe revelou um rumo diferente.
Eu tinha sabido por um companheiro que Carsy era um grande caçador que conhecia tudo sobre os bosques. Procurei-o e lhe disse que eu também queria ser um grande caçador e aprender tudo sobre as matas. Ele concordou em se tornar meu camarada. Contou-me que seu pai havia morrido e que sua mãe era obrigada a trabalhar em outra cidade, mas que gostava dali, ao que dizia, porque os campos livres se estendiam até o quintal da avó e porque a floresta não ficava muito longe. Então deu um assobio e Daisy apareceu, num salto, abanando a causa cheia de carrapichos, como se estivessem em convulsões.
A emoção descoberta. Voltamos atravessando os campos, com Daisy a correr em círculos à nossa volta, seu focinho de caçadora farejando o solo. Diversas vezes ela disparou atrás de marmotas, quase alcançando-as antes que elas se refugiassem em suas tocas. Depois de cada fracasso ela voltava sorrateira, para os pés de Carsy, com os olhos tristonhos a implorar compaixão. Carsy acariciava sua cabeça castanha e dizia: “Não faz mão, garota, qualquer dia vamos pegar uma delas para você.”
Passei mesmo muitas horas da minha meninice vagando pelas matas e pelos campos com Carsy e Daisy, e era freqüente matarmos animais. Eu lamentava ver as criaturas selvagens morrerem, mas ansiava por conhece-las melhor, e isso era um modo de consegui-lo. Descobrimos um livro sobre taxidermia e passamos a tirar as peles e a empalhar nossos espécimes.
De vez em quando minha mãe dizia que eu já não podia sair com Carsy. Ele era sujo, um “mau elemento”, um “miserável, patife”, um “vagabundo que nunca valerá coisa alguma” e que nunca compareceu à escola dominical. Expliquei-lhe que Carsy não tinha roupas para freqüentar essa escola. Decorridos alguns dias, entretanto, ela se esquecia da coisa, e eu tornava a sair perambulando com Carsy.
Continuamos assim durante uns dois anos. Então, num mês de maio, Daisy teve filhotes e, de repente, tudo mudou. Carsy ficou tão entusiasmado com os filhotes que fez uma coisa que nunca fizera antes: veio até a minha casa para me contar. Daisy estava deitada na sua caixa, no telheiro de lenha, e nos recebeu abanando a cauda e com uns olhos arregalados dos quais parecia haver desaparecido a tristeza habitual. Eram apenas dois filhotes. A meu ver eles pareciam lânguidos e frágeis, mas Carsy não dava a impressão de notar. Ostentando um sorriso de orgulho, ele os acariciava e exclamava: “Agora vamos ter três cães de caça para nos acompanhar.”
Na manhã seguinte, um sábado, os filhotes morreram. A fisionomia de Carsy era tensa e sua voz tremia enquanto me levava até a caixa onde Daisy agora estava deitada, sozinha. Bateu levemente na cabeça dela e lhe disse: ” Não faz mal, a culpa não é sua. Hoje nós arranjamos uma marmota para você!”
Apanhou a arma e partimos, deixando para trás Daisy, debilitada. Ao lado de um riacho a 800m de distância havia uma toca de marmotas, e geralmente à entrada ficava uma delas, grande e velha, se aquecendo ao sol. Aproximamo-nos por um campo de alfafa, mas quando Carsy, apoiado num cotovelo, se ergueu para atirar, a marmota correu para a toca.
“Temos que pegá-la”, afirmou Carsy. “Podemos ir apanhar água no riacho e afogar essa bandida.”
Disparamos rumo à casa da avó dele para buscar baldes e voltamos para a toca da marmota. Correndo para baixo e para cima pela margem do riacho, esvaziamos um balde de água atrás do outro dentro da toca do animal. O trabalho foi grande porque o solo arenoso absorvia grande parte da água que estávamos derramando no buraco. Meus braços magros doíam. Em compensação, lá embaixo, na escuridão da toca, ouvíamos o barulho da água a subir cada vez mais. Por fim a marmota saiu correndo. Carsy estava preparado, disparou a arma e o animal tombou com as perninhas curtas tremendo. Tínhamos, afinal, apanhado uma marmota!
Não houve euforia porque, quando Carsy com o pé virou o animal, percebemos três filhotes, molhados, contorcendo-se, agarrados ao peito da mãe. Nunca hei de esquecer a angústia sufocante que senti naquele momento. Os olhos dos filhotes estavam começando a se abrir; não passavam de fendas estreitas. Foi então que os sentimentos conflitantes que eu sempre tivera com relação às nossas caçadas se cristalizaram de repente em remorso e repugnância.
“Vamos, disse ele. “Temos de levar esta marmota para Daisy enquanto está quentinha. Os cães de caça precisam comer carne quente.”
“Que é que vai fazer com os filhotes?”, indaguei.
Carsy não respondeu durante vários segundos e, quando o fez, foi com um desanimado “Não sei”.
Cobri o fundo de um dos baldes com capim, ajeitei os bichinhos e iniciamos a volta. Nenhum de nós falou. Daisy apareceu à porta do telheiro para nos receber mas, quando Carsy deixou cair a marmota diante dela, limitou-se a cheira-la e voltou para sua cama na caixa.
“Os cães gostam de abater a carne que comem”, explicou Carsy. Olhou para os filhotes dentro do meu balde. “Escute, assim eles vão morrer”, disse. “Convém dá-los a Daisy para comer. É o melhor. Daisy vai mata-los rápido.”
“Não”, disse eu, com muita firmeza. Era a primeira vez que discutia com Carsy.
Brilho de lágrimas. Ele arrancou o balde de minhas mãos, retirou as marmotinhas e as deixou cair na caixa, ao lado do focinho de Daisy. Ela farejou os filhotes um por um, e depois começou a lambe-los. Após alguns segundos, vi Daisy abrir a boca, e senti um calafrio; mas seus dentes fecharam-se delicadamente sobre o menorzinho, e ela o colocou na curva do seu ventre. Fez o mesmo com os outros dois, aconchegando-os carinhosamente contra o calor do seu pêlo. Um por um os bichinhos foram encontrando as tetas e começaram a mamar. Daisy levantou o olhar para nós, com uma satisfação serena nos olhos grandes e a causa abanando de mansinho contra o lado da caixa.
Por sobre os olhos de Carsy apareceu um brilho leve e cristalino de lágrimas. Disse apenas o seguinte: “Acho que Daisy quer ser mãe deles.”
É possível que os biólogos tivessem encontrado uma explicação qualquer para o caso, relacionando os filhotes que Daisy havia perdido, hormônios e a frustração dos instintos maternais que tudo isso lhe havia causado. Para Carsy, no entanto, foi uma coisa diferente. Daisy lhe dera uma lição de vida que ele não haveria de esquecer. Nunca mais o vi de arma a tiracolo.
Pouco depois Carsy e a avó partiram de minha cidade natal, e vários anos se passaram até que eu tivesse notícias dele. Trabalhava então no abrigo de uma sociedade protetora de animais, amando-os como eu sempre soubera que ele os amava.
Teria dado bom veterinário, mas o mundo convocou Carsy West para voltar a matar; ele se alistou no início da Segunda Guerra Mundial. Nos treinamentos de tiro tenho certeza de que foi um excelente atirador, mas em combate duvido de que Carsy West houvesse conseguido puxar o gatilho contra qualquer alvo vivo sem uma pequena luta no íntimo da sua consciência. Talvez por isso ele tenha sobrevivido tão pouco, pois foi morto na França alguns dias depois dos desembarques do Dia D.

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