sexta-feira, maio 19

O marquês, a porca e eu.

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1978
Autor : James Herriot

Em certos momentos, a vida de um veterinário vale mais que a de um rei

Eu tinha combinado começar o teste de tuberculina no gado de Lorde Hulton às 9:30 e, ao contornar os fundos da mansão elisabetana, em direção ao curral da fazenda, senti apreensão: não havia nenhum animal à vista. Apenas um homem com calças esfarrapadas construía um cercado provisório ( uma passagem delimitada por uma cerca mais estreita numa das extremidades) na saída do curral.
Virou-se ao ver-me e acenou com o martelo. Quando me aproximei, olhei admirado para a pequena figura com o cabelo alourado liso caindo sobre a testa, o casaco esburacado e as botas cobertas de esterco.
“Herriot, meu caro”, disse ele, “sinto muitíssimo, mas acho que ainda não estamos prontos para você iniciar seu trabalho.” E começou a remexer em sua bolsa de fumo.
William George Henry Augustus, 11º marquês de Hulton, sempre trazia na boca um cachimbo que estava invariavelmente enchendo, limpando ou tentando acender. Nas horas de tensão, tentava fazer tudo ao mesmo tempo.
“Estou muito triste, velho amigo”, disse ele espalhando palitos de fósforos em volta e deixando cair flocos de tabaco no piso de pedra. “Eu realmente prometi estar pronto às 9:30, mas esses malditos animais não cooperam.”
Tentei sorrir. “Ora, não tem importância, Lorde Hulton, hoje não estou com tanta pressa assim.”
Se eu fosse um marquês e um par de reino, pensei comigo, ainda estaria na cama, ou talvez tivesse entreaberto as cortinas para ver como estava o dia, mas lorde Hulton trabalhava o tempo todo, tanto quanto seus homens. Certa manhã, encontrei-o na tarefa sumamente prosaica de “juntar o esterco”; estava num monte de estrume com uma forquilha atirando as porções poeirentas sobre sua carreta. E se vestia sempre de farrapos. Naturalmente tinha roupas mais convencionais no guarda-roupa, mas nunca as vi.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo trovão de cascos e mugidos selvagens; o gado de lode Hulton estava se aproximando. Em poucos minutos o curral ficou repleto de animais movendo-se em círculos, com a poeira levantando-se de seus corpos em redemoinhos.
“Guie a primeira para o cercado!” gritou o marquês para Charlie, capataz da fazenda. Uma vez confinada na estreita estacada, a vaca ficaria acessível para mim.
Ofegando, ansioso, o marquês apoiou-se nas bordas pregadas enquanto os homens do lado de dentro abriam o portão do curral. Não teve de esperar muito. Um peludo monstro castanho arremessou-se do interior, apareceu brevemente na apertada passagem e disparou a 75km/h pela outra extremidade com pedaços da obra de carpintaria do lorde pendurados nos chifres e no pescoço. O resto do gado seguiu logo atrás.
“Detenha-s! Acabe com isso!” gritou o pequeno par, mas foi em vão. Uma torrente cabeluda atravessou a abertura e, num instante, todo o rebanho corria para as montanhas num estouro selvagem. Os homens o seguiram, e em poucos minutos lorde Hulton e eu estávamos sozinhos como antes. “Veja só”, murmurou desapontado, “não funcionou muito bem, não foi?”
mas ele era feito de pedra. Segurando o martelo, começou a bater com o mesmo entusiasmo e nas hora em que os animais voltaram o cercado estava refeito e uma firma barra de ferro pressionava a parte da frente para evitar novas ultrapassagens.
O problema parecia definitivamente resolvido uma vez que a primeira vaca, quando se defrontou com a barra, ficou quieta e eu não tive dificuldade em raspar o pêlo do pescoço por uma abertura entre as traves, antes de injetar a tuberculina.
Tudo corria bem até que vimos a vaca que havia arrebentado a cerca. Apresentava um pequeno arranhão no pescoço.
“Vejam só aqui!” gritou o marquês. “Vai sarar?”
“Claro, isso não é nada”, concordei, para tranqüiliza-lo.
“Ah, bom. Mas você não acha que devíamos passar alguma coisa? Aquela pomada...”
Esperei. Lorde Hulton era fanático pelo creme Propamidine da May & Baker. Ele o adorava. Infelizmente jamais conseguia dizer “Propamidine”. Na verdade, ninguém mais em toda a fazenda conseguia dizer o nome, a não ser Charlie – que aliás pensava ser capaz de faze-lo. Ele dizia “Propopamide”, mas o marquês tinha toda a confiança nele.
“Charlie!” vociferou o marquês. “Você está aí, Charlie?”
o capataz apareceu e pôs a mão no chapéu. “Estou, milorde.”
“Charlie, aquele remédio maravilhoso que o Sr. Herriot nos deu – você sabe, para cortes e arranhões. Pro... Pero... Que diabo! Como é que se chama aquela coisa?”
Charlie fez uma pausa. Era o seu grande momento. “Propopamide, milorde.”
O marquês, imensamente satisfeito, deu um tapa no joelho das calças surradas. “È isso mesmo, Propopamide! Maldição, não consigo destravar esta minha língua direito. Muito bem, Chjarlie, você é fantástico!”
“Obrigado, milorde.” Charlie tinha a expressão convencida do especialista, quando levou o gado.
Apenas uma semana depois, quando toda a região estava silenciosa com o inverno implacável, o telefone ao lado de minha cama tocou, tirando-me do sono às 5:30.
“Alo!’ grunhi.
“Herriot... Alo, Herriot.... é você?” A voz estava tensa.
“Sim, sou eu, lorde Hulton.”
“Ah, ótimo.... ótimo.... Escute, peço mil desculpas. É realmente imperdoável acordá-lo assim.... mas algo de especial aconteceu.” Ouvi um suave tamborilar que imaginei serem fósforos caindo perto do aparelho.
Uma das melhores porcas de lorde Hulton, que tinha acabado de dar à luz 12 belos leitõezinhos, estava com um prolapso uterino*. Não adiantava eu dizer que não tinha atendido a mais de cinco casos de porcas com um prolapso assim e falhara em todos. Tinha que tentar. “Vou logo para aí”, murmurei.
Não havia lua e o tênue brilho da porta do chiqueiro era a única luz entre as negras linhas dos prédios. Lorde Hulton estava esperando e achei necessário avisa-lo de que provavelmente a porca teria que ser sacrificada.
Os olhos do homenzinho se arregalaram e os cantos da boca caíram. “Ora, não me diga! Que aborrecimento... um dos meus melhores animais. Eu.... eu gosto muito daquela porca.” Ele vestia um suéter de gola alta tão usada que a bainha pendia em longas franjas de lã quase até os joelhos e tremia ao tentar acender o cachimbo; parecia muito perturbado.
“Vou fazer todo o possível”, apressei-me a acrescentar. “Sempre há uma chance.”
“Ora, que bom homem!” Mais aliviado, o marquês deixou cair a bolsa e, ao curvar-se, a caixa de fósforos aberta derramou em volta de seus pés.
A realidade era tão ruim como eu pensava. Debaixo da única e fraca lâmpada elétrica do chiqueiro, uma inacreditavelmente longa massa vermelha de tecido animal muito sólido saía de trás de uma enorme porca branca deitada, imóvel, de lado. Enquanto tirava a camisa e enfiava os braços num balde fumegante, veio-me a idéia de que era ridículo tudo aquilo entrar de volta num buraco tão absurdamente pequeno. A impressão foi reforçada quando comecei a empurrar. Não aconteceu nada. Deitado, com o peito nu contra o concreto frio, lutei contra aquela coisa até que meus olhos se esbugalharam e minha respiração faltou, mas não consegui coisa nenhuma. Acabei tomando uma decisão: tinha de lhe dizer.
Voltei-me e olhei ofegante para o marquês, esperando tomar fôlego para falar. Mas, antes que minha boca elaborasse as palavras, o homenzinho fitou-me suplicante como se soubesse o que eu ia dizer. Tentou sorrir, olhou ansiosamente para mim, para a porca, para mim de novo. Da outra extremidade do animal um leve grunhido sem lamentação lembrou-me de que eu não era o único envolvido.
Deitei-me de bruços novamente, apoiei os pés contra a parede co chiqueiro e recomecei. Não sei por quanto tempo fiquei lá, deitado, empurrando, descansando, empurrando mais uma vez, ofegando e gemendo, com o suor a escorrer pelas costas. Foi aí que, sem motivo aparente, o monte de carne em meus braços pareceu diminuir. Concentrando o máximo de minha energia para um esforço final, empurrei. E, por milagre, o grande órgão desapareceu de vista.
“Que bravo rapaz! Veja só, maravilhoso! Mas que rapaz forte!” Ele estava quase dançando.
Rapidamente dei alguns pontos na vulva para impedir que o útero saísse novamente, e, exausto, apoiei-me na parede. Os olhos do homenzinho estavam cheios de preocupação. “Herriot, meu caro, você está esgotado! Vai acabar pegando uma pneumonia se continuar assim, seminu. Você precisa de uma bebida quente. Faça o seguinte: limpe-se que eu vou lá em casa pegar uma coisa.”
Eu estava abotoando o casaco quando o pequeno par voltou. Trazia uma bandeja com uma caneca de café fumegante e dois grandes pedaços de pão e mel. Colocou-a sobre um fardo de palha e usou um balde virado como banco. “Os criados ainda estão dormindo, meu caro”, disse ele. “Então eu mesmo preparei esta refeição ligeira para você.”
Sentei-me no balde e tomei um longo gole de café. Estava forte, escaldante, estimulante e espalhou-se como fogo por dentro de meu corpo cansado. Mordi um pedaço de pão feito em casa, fartamente coberto com manteiga de fazenda e uma generosa camada de mel de urza. Fechei os olhos em veneração, enquanto mastigava; depois peguei a caneca de café novamente, olhei para a pequena figura ao pé do cercado e desabafei: “Deixe-me dizer-lhe, milorde, que isto não é uma refeição ligeira, é um banquete!”
Sua face se iluminou com um contentamento maroto. “Bem, não me diga... Você acha realmente? Fico tão satisfeito! Mas você é que foi maravilhoso, meu rapaz. Não sei como expressar minha gratidão.”
Continuei a comer em êxtase, sentindo a energia voltar. Sentado ali no balde, entre os aromas misturados de porco, farinha de cevada e café, podia sentir um prazer que me atravessava em ondas. Olhando para dentro do chiqueiro, senti-me recompensado. Os leitõezinhos estavam de volta para sua mãe, lado a lado numa longa fila cor-de-rosa, enquanto as pequenas bocas procuravam as tetas. Um velho sentimento começou a borbulhar dentro de mim, um profundo senso de realização que vem depois de qualquer triunfo, mesmo dos menores.
Foi quando um outro pensamento começou a se insinuar em minha mente como um delicioso e impertinente zunido. Naquele momento, quem mais em toda a Grã-Bretanha estava comendo um café da manhã preparado – e depois servido – por um marques?

*Prolapso é a saída de um órgão ou de parte dele para fora de seu lugar.

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