segunda-feira, maio 22

A odisséia de um salvamento

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1978
Autor : Timothy Hall


Um pesadelo de pântanos e correntezas, cobras e crocodilos na noite escura e no dia escaldante.

Os acontecimentos que originaram a fantástica odisséia do policial Graham Robson, de Queensland, Austrália, registraram-se no dia 19 de fevereiro de 1976 no posto da polícia em Mount Isa. O inspetor Jack Vaudin ouviu atentamente quando Jessie Brown explicou como alugara um pequeno avião e, na companhia de sua nora, havia localizado seu filho Dennis, de 29 anos, que se encontrava encurralado num caminhão completamente cercado pelas águas da inundação que se estendia por vários quilômetros em todas as direções.
A sra. Jessie Brown apontou a Vaudin no grande mapa na parede o local onde exatamente Dennis se achava isolado: na estrada de Cvamooweal a Burketown, a 150 km ao sul do golfo de Carpentária.
“É aqui que ele se encontra”, disse-lhe absolutamente convicta, “e a água vem subindo rapidamente por todos os lados.”
“Não se preocupe”, tranqüilizou-a Vaudin. “Nós vamos fazer tudo para trazê-lo de volta.”
A ODISSÉIA de Dennis Brown principiara quatro dias antes quando ele partiu de sua pequena fazenda de gado, Frenchman’s Gardens, tentando fugir a uma tempestade tropical que começava a formar-se na região de Mount Isa, 250 km ao sul. Era a estação das chuvas, e os serviços meteorológicos já haviam registrado naquela área índices de precipitação pluviométrica de 550mm em apenas 24 horas. Os cursos de água, transbordando de seus leitos, muitas vezes isolavam remotas povoações do interior. Se ele não quisesse f içar ali retido durante dois ou três meses teria de partir imediatamente.
Dennis já ia dirigindo há sete horas quando, subitamente, seu caminhão de tração nas quatro rodas deu uma violenta guinada e as rodas da frente afundaram na estrada. O rapaz pulou para fora e imediatamente ficou mergulhado até a cintura em lama borbulhante com cheiro de enxofre que lhe sugava as pernas como se fosse areia movediça. Ele levara seu caminhão precisamente para dentro de uma das mais perigosas armadilhas que um motorista desavisado pode encontrar no interior da Austrália. Um estrato de rocha dura a uns quatro ou cinco metros abaixo do nível da estrada evita a infiltração das águas que escorrem das montanhas, com isso pouco a pouco o subsolo vai ficando saturado de água, mas a superfície do terreno, ressequida pelo Carlo do sol, forma uma crosta dura. Essa crosta é resistente o bastante para agüentar o peso de um homem ou mesmo o de um cavalo, mas qualquer veículo que passe por ali se perde irremediavelmente.
Dennis sabia que nunca seria capaz de sair dali a pé: sua perna esquerda fora afetada pela paralisia infantil e o jovem tinha dificuldade em caminhar. A povoação mais próxima, o lugarejo de Gregory Downs onde viviam apenas 12 pessoas, ficava a cerca de 67 km: e, como havia principiado a estação das chuvas, era muito pouco provável que qualquer outro veículo passasse por ali nos dois meses seguintes.
Naquela noite caíram 100mm de chuva em menos de uma hora, e os córregos transbordantes haviam cercado o rapaz. Durante todo o dia seguinte ele pelejou para tirar dali o caminhão, mas quando a noite chegou o veículo estava ainda mais atolado que antes. Não havia outra possibilidade senão esperar que fosse socorrido.
Na quarta-feira estava reduzido à sua última lada de carne. A temperatura subiu a 42º C, e o calor e a umidade iam minando suas energias. Na quinta-feira de manhã ele começou a se sentir fraco e mole. Então o avião Cessna que andava nas buscas roncou sobre sua cabeça e os tripulantes lançaram comida. Por alguns momentos o desespero de Dennis diminuiu.
De seu posto em Mount Isa o inspetor Vaudin dera instruções a dois dos seus mais competentes auxiliares: o sargento Ray Brand, de 39 anos, e o guarda Graham Robson, de 23. “Façam tudo que for possível!”, foi a ordem para salvar Dennis Brown. Seguindo as instruções, Ray e Graham meteram rações de emergência num carro da policia equipado com tração nas quatro rodas e rapidamente partiram de Camooweal, a cerca de 150 km a sueste do local onde Dennis se encontrava.
O caminho que tomaram transformou-se num autêntico pesadelo. Nos últimos 50km Ray e Graham avançavam quase como se fossem a passo ou mais lentamente ainda, aos solavancos em fundos buracos, atravessando caudalosos riachos e traiçoeiros areais, derrapando quase fora de controle em lamaçais negros. Numa extensão de centenas de metros a estrada estava submersa.
Só às 21:15, seis horas depois de terem saído de Camooweal, é que finalmente localizaram Dennis Brown, de pé ao lado de seu caminhão atolado. “Eu pensava que já tinha presenciado grandes emoções”, recordaria Ray mais tarde, “mas naquele momento foi que vi de fato a absoluta sensação de alivio e felicidade estampada no rosto de Dennis. Só isso valeu todo aquele esforço.”
Essa alegria dos três homens, porém, em breve iria descambar para o desespero. Quando a viatura de polícia começou a puxar o cabo amarrado ao caminhão de Dennis, abateu mais um pedaço do pavimento da estrada, e agora havia outro carro irremediavelmente atolado ali. Durante quatro horas eles escavaram e colocaram troncos por baixo das rodas, mas então, tal como acontecera com Dennis três dias antes, verificaram que a única coisa que haviam conseguido fora enterrar o caminhão ainda mais no lamaçal.
No meio daquele anfiteatro formado pelas montanhas circundantes, o rádio transmissor-receptor que haviam levado praticamente não funcionava, e com outra tempestade iminente os três corriam o perigo de serem engolfados por uma enxurrada. Então, mais ou menos à uma da madrugada, Grahan sugeriu que, sendo ele o que tinha melhores condições físicas e nascera e fora criado naquela região do interior, deveria tentar percorrer a pé os 67 km até Gregory Downs, para pedir auxilio. Em qualquer outra circunstância isso teria sido uma idéia quase suicida, mas aquela situação não era normal. Um pouco contrafeito, o sargento Ray Brand concordou, e Graham sem hesitar sumiu rapidamente dentro da noite.
Nos primeiros 10 km conseguiu progredir bem através da vegetação cheia de espinhos. Foi quando ele percebeu um som de água correndo violentamente. Na densa escuridão podia ouvir os ramos de árvores arrancadas quebrando e sendo arrastados pela correnteza do córrego agora turbulento e caudaloso. Graham calculou que aquele rio tivesse pelos menos uns 100m de largura e talvez 3 m de profundidade.
Entrou na água revolta, mas logo retrocedeu quando ouviu a jusante o ruído surdo de um crocodilo. Durante toda a sua vida ele sentira pavor desses répteis, e sabia que o rio Gregory, no qual aquele córrego desaguava uns quilômetros mais abaixo, era um refúgio dos crocodilos. Poucas semanas antes lera a notícia de que um caçador fora comido vivo por um crocodilo de 7 m um pouco mais ao norte naquela região.
Durante uns 10 minutos ficou na margem apurando o ouvido para tentar localizar o animal. Nisto sentiu vergonha: tinha prometido ir buscar ajuda e agora ali estava amedrontado, sem coragem de enfrentar o seu primeiro grande obstáculo.
Suspendendo a respiração, Graham entrou resolutamente no rio. Quando estava com água pelo peito murmurou uma prece e mergulhou. Embora fosse um excelente nadador ia sendo rapidamente arrastado pela corrente... em direção ao crocodilo. Ramos e troncos, muitos com peso suficiente para deixa-lo inconsciente, chocavam-se contra ele. A meio caminho ergueu-se para afastar aquilo que pensava ser um tronco comprido, mas, horrorizado notou que “a coisa” mexia: era uma enorme cobra-d’agua píton. Passado o susto, deixou que a água arrastasse a grande cobra, roçando a pele fria pelo seu rosto. Depois, com a água escorrendo das roupas, engatinhou pela margem.
Sua odisséia, na verdade, mal havia começado e ele já se defrontara com dois dos maiores perigos dos sertão australiano: os crocodilos e as cobras. As pítons não são venenosas, mas logo Grahan se fez consciente de outra ameaça que talvez fosse encontrar nos campos alagados mais adiante – cobras venenosas que tal como ele estariam procurando pontos mais altos ainda não inundados. Durante toda a noite ele se arrepiou só de pensar na possibilidade de pisar num bicho desses.
Durante os 15 km seguintes Graham andou a maior parte do tempo na água, muitas vezes com ela pela cintura. Tirou as sandálias, que na lama não lhe serviam para nada, e, quando seus shorts úmidos começaram a lhe esfolar a pele, tirou-os também. Escorregava e caia constantemente, arranhando-se e cortando-se nas pedras aguçadas. Era atacado por nuvens de mosquitos, as sanguessugas agarravam-se aos seus pés e tornozelos; lacraias enormes subiam-lhe pelas pernas e pelo corpo.
Por três vezes, quando atravessava o rio com água pela cintura, o chão cedeu subitamente debaixo de seus pés e ele ficou se debatendo com água até o pescoço enquanto a lama viscosa lhe sugava as pernas. Em todas as vezes conseguiu agarrar-se a tufos de vegetação e penosamente se soltou, já quase sem poder respirar e o coração batendo como louco. Apesar de tudo isso continuava dizendo para si: “Tenho de ir em frente. Preciso buscar ajuda.” E, pingando, tremendo e morrendo de medo, continuava seu caminho.
Começou a chover no memento em que ele avançava com dificuldade através do denso e negro lamaçal entre os tufos de mato que lhe batiam pela cintura. Suas virilhas estavam tão esfoladas que ele tinha de caminha de pernas abertas, como se fosse a cavalo. A chuva tornou-se torrencial e ao longe ele via os imensos riscos de fogo dos relâmpagos cruzando o céu – sinal de que outras tempestades vinham chegando e de que o perigo aumentava para o sargento Brand e para Dennis Brown.
Às cinco da manhã os primeiros alvores do dia devem ter salvo a vida de Grahan Robson: uns cinco ou seis passos à frente, no meio da picada, estava uma das maiores cobras que ele jamais tinha visto. Com bem mais de 2 m de comprimento e tão grossa como um pulso, a terrível cobra venenosa levantava a cabeça e oscilava de um lado para o outro preparando o bote. Durante segundos que pareceram uma eternidade o rapaz e o réptil fitaram-se mutuamente. Então, muito cautelosamente, Graham foi recuando sem tirar os olhos da cobra e, quando estava fora do alcance de um bote, correu.
Quando a temperatura alcançou 31º C e a umidade se tornou sufocante, Graham olhou para o relógio. Passara algum tempo e, portanto, ele devia ter percorrido certa distância. Seus instintos, porém, lhe diziam que tinha estado sempre no mesmo lugar. Abutres e urubus esvoaçavam lá no alto e isso trazia algo de sinistro à mente de Graham.
Avançando com dificuldade, quase mecanicamente, de cabeça baixa, o jovem começou a ter alucinações e caiu numa grande poça onde ficou por alguns minutos,. Prosseguindo em seu caminho, a princípio não se deu conta do ruído de um motor uns metros à sua frente. Então, levantando os olhos semicerrados, viu uma máquina de terraplenagem conduzida por um homem. Lentamente, ajoelhou-se na orla da trilha lamacenta e cingiu a cabeça com as mãos numa atitude de exaustão e alívio.
O motorista da máquina notou que Graham apresentava extensas queimaduras do sol, que as esfoladuras de suas pernas estavam sangrando e que todo o seu corpo era uma confusão de ferimentos e de picadas de moscas e mosquitos.
Não podia acreditar quando constatou que, em nove horas, Graham havia caminhado, rastejado e nadado por 67 km num terreno tão agreste como aquele. Levou o rapaz para Gregory Downs, onde rapidamente se reuniram a uma equipe de salvamento. Às 16:30 de sexta-feira, 20 de fevereiro, Graham encontrava-se de novo no local de onde partira para sua épica jornada, levando consigo através dos campos inundados uma pequena caravana para a difícil missão de resgatar Dennis Brown e o sargento Ray Brand.
Nessa noite, já em Camooweal (depois de 42 horas em permanente atividade), Graham murmurou para o sargento algo como sentir-se “um pouco cansado”. Dormiu mais de 12 horas.
Dennis Brown, que achou impossível expressar por palavras sua gratidão, recusou a oferta de Ray Brand de uma cama para essa noite. Telefonou à mulher para lhe dizer que estava salvo e que o que pretendia era chegar em casa sem demora. ÀS 5:00 da manhã ele estava em Mount Isa – seis dias depois de ter iniciado sua viagem.
Cartas e mensagens começaram a chegar ao posto da policia. O Departamento de Policia de Queensland conferiu a Graham Robson sua mais alta condecoração por coragem e dedicação ao serviço. A Real Sociedade Humanista da Austrália deu-lhe a sua medalha de prata por heroísmo, e em fevereiro de 1977, um ano depois de sua incrível odisséia, foi galardoado com a Medalha de Ouro Stanhope, a mais distinta condecoração da Sociedade Humanista da Grã-Bretanha, premiando o seu serviço como o maior ato de bravura registrado no ano anterior em toda a Comunidade Britânica.
Dennis Brown sente grande satisfação por todas as honrarias com que o jovem policial foi acumulado, mas acrescenta: “Enfrentar todas aquelas dificuldades para salvar uma pessoa que nunca se viu antes é o que define realmente um verdadeiro herói.”

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