quarta-feira, maio 3

"Apenas um cachorro perdido..."

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1972
Autor : Jerome Brondfield

A história de um animal de amou e foi amado

Era completamente ridículo, comentava o ruivo gorducho durante uma típica conversa de noite de sábado no bairro – referindo-se ao comportamento de uma família vizinha que havia perdido seu cachorro.
Os garotos choravam sem parar e não comiam, a mãe andava às tontas, infeliz e com os olhos úmidos, e o pai afixava cartazes oferecendo recompensa pela área toda.
Apenas um cachorro perdido”, suspirou o ruivo. “O mundo inteiro desabando, e eles morrendo por causa de um cachorro que se perdeu!”
deixei o camarada falando, saí do grupo e recordei o que acontecera havia alguns anos. Havia tempo que não pensava naquilo...
eu estava numa viagem rápida a Londres, com mais seis jornalistas.
Na primeira noite no hotel, o telefone tocou à meia-noite. Era uma chamada internacional: minha mulher. “Não se assuste”, começou ela, “mas trata-se do Alex. Ele... desapareceu.”
A palavra era eufemisticamente ominosa. “Que quer dizer com desapareceu?” Eu estava agarrado ao telefone, gritando, numa aflição que tentava cobrir 5.500 quilômetros de distância.
“foi ontem”, disse ela. “Levei-o ao veterinário para examinar aquela causa machucada, como você disse. O dR. Barnes disse que havia infecção e achou melhor que o Alex passasse a noite lá para ser tratado. Ficou com ele. Mas você sabe como o Alex detesta veterinários. Quando alguém abriu a porta da sala de exames, Alex pulou da mesa, saiu correndo e chegou à porta de rua exatamente quando alguém vinha entrando. Foi uma coincidência infeliz. Quer dizer, esse negócio das portas.”
O veterinário e um assistente tinham percorrido a vizinhança de carro, perguntado a todo mundo se tinham visto um grande Labrador de caça de pêlo preto, com um curativo na cauda. Nada. Alex tinha desaparecido.
O problema é que o veterinário ficava a vários quilômetros da nossa casa, e Alex tinha ido para lá de carro. Assim, ele não tinha qualquer pista para seguir e encontrar o caminho de casa.
Ela tentou me tranqüilizar. “Não se preocupe. Ellen fez toda a turma da classe dela sair à procura de Alex. Nós o encontremos!”
Não fiquei muito impressionado com esta demonstração do talento social da minha filha. E estava começando a entrar em pânico. “Se até amanhã ele não aparecer”, gritei eu, “pego o primeiro avião de volta!”
Depois de desligar, comecei a pensar no que aquilo tudo significava para mim.
Alex viera para nós quando tinha três meses. Agora estava com nova anos e era um magnífico animal de pêlo reluzente. Se explicávamos a alguém sua posição na família, a pessoa geralmente exclamava: “Você está brincando comigo!” Basta dizer que minha mulher e eu tivemos de comprar uma cama tamanho extragrande, porque, sempre que Alex resolvia aparecer para passar o resto da noite, não havia nada que pudéssemos fazer. Ou melhor, que quiséssemos fazer. Já chega, para começo de conversa?
Ele era um atleta extraordinário. Os garotos ficavam abismados ao vê-lo seguir com o olhar uma bola saltando e sair do chão para apanha-lo com a boca em pleno ar. Não perdia uma. Para legiões de outros garotos, Alex era o sorrateiro ladrão que abiscoitava qualquer bola deixada num gramado. Tínhamos duas sacas de compras cheias delas. Volta e meia, aparecia um menino para vasculha-las à procura de uma bola marcada com as suas iniciais, com Alex observando-o rancorosamente.
Ele era conhecido entre os vizinhos com o “garoto do colar”. Sua coleira tinha presas todas as chapinhas de licenças e vacinas adquiridas ao longo dos anos. Acho que ele chegou a ter umas 16 delas penduradas como balangadans e, nas noites calmas de verão, quando o deixávamos sair para seu alegre passeio das 10 horas, podíamos ouvir através das janelas abertas o tilintar musical da sua coleira a mais de um quarteirão de distância.
De vez em quando ele sumia durante horas, e eu começava a me preocupar. Muitas vezes eu acordava às duas da madrugada, pegava o carro e ficava às voltas procurando Alex. Nunca o encontrava. Mas (veja se agüenta esta!) invariavelmente, quando voltava a casa, ia encontra-lo na sala de jantar, com os dentes arreganhados para mim através da janela. E encontrava também sempre a sonolenta ladainha da minha mulher: “Ele apareceu cinco minutos depois de você sair.” Eu sei que aquilo era deliberado da parte dele. Estava permanentemente me experimentando.
Embora fosse eu quem pagava a hipoteca, Alex era o dono da casa. Juro que quando ele subia para o sofá para tirar uma soneca, primeiro derrubava uma das almofadas do encosto para ter onde deitar a cabeça. É também verdade que, nos seus aniversários, minha filha Ellen amarrava-lhe cerimoniosamente um guardanapo de damasco dourado no pescoço, enquanto ele comia um bife especial – à mesa. Os outros achavam que nós éramos malucos. Nós achávamos aquilo tudo gozadíssimo.
Espantosa, mesmo, era a intimidade existente entre mim e Alex. Ele ficava doido quando eu chegava a casa, à noite, pegava minhas mãos na boca, na maior alegria, expressando todo o seu admirável amor no rosto sorridente. Em momentos de maior doidice, eu ia para o chão e lutava com ele – uma cena de Tarzan, com grunhidos terríveis e tudo. Alex adorava aquilo. E eu também. Um estranho que nos visse pensaria que estávamos envolvidos num combate mortal. Bem, eu podia continuar a contar coisas, mas quem iria acreditar?
Agora você já pode começar a entender como me senti depois daquele telefonema transatlântico da minha mulher. Fiquei inconsolável, arrasado. Passei uma noite negra, sem dormir.
Na manhã seguinte, contei para alguns colegas o que tinha acontecido. Tudo que ouvi foi alguns polidos “que pena”. O encontro com importantes figuras do Governo que se realizou no nº 10 de Downing Street foi zero para mim. O mesmo aconteceu com as homenagens que nos prestaram em Fleet Street, o centro do mundo jornalístico britânico. Naquela tarde, fomos ver o musical Picwick. Não teve o menor interesse. Depois devíamos ir a um jantar, mas dei uma desculpa – eu simplesmente não tinha ânimo suficiente.
Quando voltei ao meu hotel, às 11 da noite, o recepcionista entregou-me um envelope amarelo com um telegrama. Abri-o apressadamente – e as lágrimas começaram a rolar. Da folha de papel saltaram duas palavras: ALEX VOLTOU. Só dizia aquilo. Naquele momento, não fazia qualquer diferença que a luxuosa recepção do Hotel Carlton Tower estivesse coalhada de elegantes damas inglesas e seus acompanhantes de casaca. Esfreguei meus olhos molhados e, sorrindo como um pateta, mostrei o telegrama para o recepcionista. “É o meu cachorro”, disse eu, extasiado. “Desculpe, mas... Alex tinha-se perdido. E agora voltou para casa!”
Eu tinha de sair e dar expansão à minha euforia. Na aristocrática Belgrave Square, ali ao lado, eu tive vontade de gritar a boa nova de que Alex estava bem, mas não teria sido muito correto entre aquelas elegantes residências. O que eu fiz foi arranjar um galho fino e, como um garoto, passa-lo fazendo barulho ao longo dos extensos gradis de ferro dos jardins. Fiz mesmo.
Naquela noite dormi o sono dos justos. Mas no dia seguinte, quando eu não conseguia parar de falar da minha sorte, alguém do grupo disse: “Para seu bem, espero sinceramente que esse seu cachorro esteja mesmo a salvo em casa...” Aí ele parou abruptamente.
Aquela insinuação agourenta explodiu em cima de mim com uma lucidez fria e agonizante. Seria que o telegrama era apenas uma tapeação da minha mulher, para não interromper a viagem?
Corri para o meu quarto e peguei o telefone. “Você não devia ter feito isso!”, gritei quando minha mulher finalmente entrou na linha. “Foi muito cruel telegrafar dizendo que Alex tinha voltado... Oh, eu sei que você estava querendo evitar que eu sofresse, enquanto estivesse aqui, mas, muito obrigado! Não funcionou!”
Ela interrompeu o meu discurso. “Você pé um amor. E é também um bobalhão. O Alex está aqui em casa – aliás, aí vem ele agora mesmo.”
Ouvi-a chamá-lo. Daí a segundos, ele estava chocalhando a coleira com sua incrível quantidade de chapinhas de licenças e vacinas – não há som no mundo que se possa comparar com aquele. E então eu o ouvi latir! “então? Acredita agora?” perguntou minha mulher. “Ele estava passeando num campo de golfe perto do veterinário quando um jardineiro viu a causa envolta em gaze, verificou sua identidade e telefonou. Acho que avancei dois sinais vermelhos até chegar lá. Dei 25 dólares àquele bom homem. Achei que você estaria de acordo.”
Eu estava de acordo. Desliguei o telefone e caí na cama, completamente arrasado.
Três dias depois, minha mulher foi me encontrar no aeroporto. Alex estava no banco de trás. Ele estava batendo em tudo com a causa enfaixada e começou a sorrir quando eu me aproximei do carro. Atirei meus braços ao redor do seu pescoço enorme e peludo. Minha mulher balançou a cabeça com um olhar enevoado. “Acho que ninguém entenderia, não é?” disse ela.
Alex morreu de leucemia, três anos depois.
Fiz uma bela lápide para ele, de cimento branco e madeira, e coloquei-o sob um enorme salgueiro num canto do jardim. A inscrição diz:
ALEX
ELE NOS AMAVA
NÓS O AMÁVAMOS

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