terça-feira, maio 2

Maria Vinagre e os ovos de ouro

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1981
Autor : Manuel de Portugal

Mordaz, exigente, sempre cheia de queixumes, ela parecia incapaz de um gesto de generosidade. No entanto foi dela que partiu ma perfeita dádiva de amor.

Chamava-se Maria Rosa de Jesus Calharica*, mas todos a tratavam por Maria Vinagre, numa serena aldeia serrana da Beira Alta. Era azeda, agreste, angulosa no rosto rugoso, seca de seios, corcovada de corpo. Arrastava a fome dos seus 70 anos, carregando carumas e esgravatando o raquítico quintal donde, todos os dias, sacava as pencas para o aguado caldo da tarde: duas batatas, um fugir de azeita e dois goles de água da fonte, perdida em atalhos de mato.
Conheci-a há 15 anos, quando lá iniciei clínica. Médico novo, sem experiência da vida, ressenti-me, ofendido, pelos modos bruscos da velha. Entrava-me pela casa dentro, a qualquer hora. E, mostrando-me a mão infectada, dizia apenas, com acidez na voz: “Trate-me.”
Dava-lhe amostras, sabendo-a mais pobre que J´. arregaçava o avental em viuvez de negrura, metia os remédios num saquito que trazia à cinta, e, ajustando o lenço no apertar do nó, virava-me as costas. Sem uma palavra – nem mesmo um adeus, um obrigado.
Meu amigo Ti Neco da Regueira definia-a em três palavras somente. “É uma besta.” E cuspia para o chão, a mostrar o desprezo.
Aos domingos, na missa, a Maria Vinagre ronroneava uma ladainha incompreensível, atabalhoando as palavras, de permeio com benzeduras estranhas, repetitivas, espalhafatosas. “Tem pancada, a mulher”, dizia eu, com os meus botões. Passei a tê-la à ilharga, como um purgatório de sarna. Ou doíam-lhe as cruzes, por via do reumático, ou sentia uma impressão na espinhela por ter dado um jeito ao acarretar um pedaço de lenha para o fogo.
Em nova Maria Vinagre fora recoveira, andara a recados, levando e trazendo, para ganhar o pão. Casara jovem, quando devia ter sido bonita – na clareza de uns olhos verdes, de amêndoa na forma, raiados de ágata. O marido, um borracho a sete dias por semana, pouco durou, cedo morrendo. Sozinha, botou luto. Criou manias e retirou-se para a aldeia.
Às vezes, quando eu tratava dela, puxava-lhe as falas: “Diga lá, senhora Rosa...” Ela, com a brusquidão de um raio, interrompia-me a frase: “Não vim aqui para conversas. Faça o que tem a fazer e despache-se.” E era em silêncio, penoso, que lhe fazia o curativo das feridas.
Agosto transpirava calor. No entardecer ouviam-se as cigarras. E era por todo o lado uma grande paz – menos dentro de mim.
Cavaqueávamos no adro: o Zé Pinhanço, lavrador; o padre Nabais, um santo. E o morgado da casa grande, um fidalgo. À noss volta, em círculo, os homens da terra. De olhar fixo, no andar compassado, passava a Maria Vinagre. Seguia a direito, estralejando as tairocas no lajedo. Absorta. Como se num outro mundo vivesse. “Nem a saudação nos dás, ó diacho”, avançava um. “Fala à gente, mulher, e guarda o teu dinheiro”, atirava outro.
Surda, de ser ou de se fazer, puxava do lenço encardido, amarfanhado de um mês de bolso, e limpava os olhos sem nos dar atenção.
“Está cada vez pior”, garantia o morgado. “Uma infeliz”, dizia o prior. O Neco da Regueira, enrolando a mortalha, fazendo o cigarro, espraiava a síntese dos seus pensamentos. “É uma besta.” E, ao domingo, dia do Senhor, não cuspia para o chão.
Morreu o outono. Friou o inverno. No início da primavera terminava o ano do meu contrato. A guerra então me surgiu, numa fria e impessoal convocação para avançar para as Áfricas. Mas só em finais de outubro, por complicações burocráticas, comecei a fazer os preparativos para me ir embora. Atulhava-se o minúsculo Fiat com malas e livros. De manhã cedo, toso me vieram abraçar. Menos a Maria Vinagre.
No carro já não cabia nem uma mão cheia de vento. Ele eram presuntos e chouriças, doces de ovos e maçãs de pomar. O pequeno motor arfava, suando as estopinhas para vencer o último barranco, antes da grande descida. O ar, leve, fresco, era um perfume de ervas numa brisa que já era saudade. Entre os pinhais desaparecera, já, a última casa. E, no estradão real, esperava-me o futuro no esbater do passado.
Ao findar da curva, um vulto, ao meio do caminho, me fez sinal para parar. “Estou aqui, gelada, desde as seis da manhã à espera que vossemecê passasse, para lhe dizer adeus”, disse ela. Baixou-se para trás de uma grande pedra e estendeu-me cinco ovos minúsculos, ainda sujos, da única galinha que era toda a sua riqueza. “São para si, doutorzinho. É tudo que tenho.” Nos lábios brilhava o primeiro sorriso que, em mais de um ano, lhe vi.
Aqueles cinco ovos, juntos num hoje-a-hoje em que a sua fome de velha se privou de os comer, eram um tesouro na sua desdita e valiam mais, muito mais, que as carnes fumadas, gordurosas e ricas, do rico morgado das terras.
Tentei recusar. “Aonde é que vou levar isso? Não vê que não há espaço nem para guardar um pinhão?”
“Arranje-se como puder, que aqui não ficam”, insistiu ela.
Tirei o presunto para fora, a arranjar espaço. No adeus, ia-lhe a estender a mão. Mas, sem sabermos por quê, sem uma palavra sequer, abraçamo-nos com força, sentindo em meu peito o forte pulsar do coração da Maria Vinagre, que, a chorar, dizia, baixinho: “Eu gostava de si... Eu gostava de si...”
A esconder a emoção, chistoso, brandi o presunto contra o azul do céu, como uma moca de carne. “Pesado como é este malandro, se o ponho em cima dos ovos esborrachamos-nos todos”, disse eu. “Leve-o você, Rosa Calharica, e coma-o e lembre-se de mim.”
Os seus olhos encovados, argutos, brilhantes de sabedoria, não viram a esmola. Passou-me as mãos pela cara, ao de leve, tímida, numa carícia muda. Respeitosa. “Amo-o, doutorzinho, como ao filho que gostava de ter tido. Não foi a vontade de Deus...”
Em toda a minha carreira de médico, nunca recebi um presente tão belo e tão valioso quanto o que a Maria Vinagre me ofereceu nessa manhã de amor.

* todos os nomes mencionados nesta história foram mudados.

Nenhum comentário: