sexta-feira, maio 26

Mais precioso que pérolas

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1973
Autor : Mel Ellis

Eram espantosamente lindas – mas o seu verdadeiro valor estavam em tê-las perdido.

Estou sempre voltando lá para ver se as grandes ostras negras ainda se amontoam ao longo do leito barrento do sinuoso Rio Rock, na esperança de encontrar uma com uma pérola luminosa como a Lua. É algo que nunca termina, que lateja em mim como uma febre de ouro desde o dia em que, garoto de 10 anos, queimado de sol, apalpando com o polegar ávido uma massa de carne e suco de ostra, toquei o primeiro nódulo duro de uma pérola e vi-a cintilando em tons de rosa-pálido, branco e azul-claro contra a luz do sol ardente.
Naquele instante, caí prisioneiro de uma promessa de riquezas como as que devem povoar os sonhos de todos os mineradores. Fiquei febril de ansiedade, e era capaz de compreender as visões que levavam mineradores a morrer atravessando desertos e montanhas em busca de tesouros.
Há 50 anos, apanhar ostras era um grande negócio – os sintéticos ainda não haviam substituído os botões de pérola feitos das conchas. Bandos itinerantes de mulheres desmazeladas, grosseiramente vestidas, e homens de macacão, andavam de rio em rio à cata da grande pérola, mas geralmente contendo-se com as pequeninas, vendidas para jóias de fantasia. Ganhavam com isso apenas o suficiente para o pão e o uísque; embora jamais o alcançassem, andavam em busca do arco-íris.
No começo, eu não sabia nada sobre pérolas nem sobre as pessoas que as pescavam. Certa noite, já deitado, ouvi um barulho estranho, ergui-me apoiado no braço, e, olhando pela janela, vi focos de lanternas percorrendo a clareira. Na manhã seguinte havia uma tenda erguida, e descobri que se tinham mudado para ali, durante a noite, uma mulher e dois homens, embora não imaginasse para que, pois não tinham varas de pescar. Mantive-me só observando de longe durante todo o dia, e esperei até à noite para perguntar ao meu pai o que estariam fazendo.
“Devem estar catando pérolas”, respondeu-me.
Pérolas! Pérolas no meu Rio Rock! Não dormi nessa noite. Na manhã seguinte, saí no meu botezinho atrás deles, levando as varas de pesca bem à vista, para não perceberem que os espreitava. Os homens andavam com água até ao peito, procurando ostras com os pés, mergulhando de vez em quando para recolhe-las. Quando tinham o barco cheio, remaram para terra e começaram a abri-las e a procurar as pérolas.
Guardei as minhas varas e meti-me por uma curva do rio, para não ser visto. E saí apanhando ostras. Quando já tinha um bom monte delas, remei de volta para casa, peguei uma faca e fui abri-las. Quanto mais força fazia mais as ostras se fechavam. Experimentei esmaga-las entre duas pedras. Assim abriam-se, mas a polpa esmagada e o suco espalhavam-se pelas minhas pernas nuas. Fique todo arranhado, machucado, os dedos cortados, e não encontrei uma única pérola.
Os homens não tinham a menor dificuldade em abrir as ostras, e, quando vi que estavam de novo debruçados sobre um monte delas, esgueirei-me através do mato e fui olhar. Vi logo como faziam – metendo a faca num ponto logo acima da articulação e girando-a de um lado para o outro. Bati em retirada e voltei para o meu próprio monte de ostras. Aí, sim, mal atingia o músculo, a ostra amolecia e eu podia abri-la sem dificuldade. Em seguida revistava cuidadosamente a carne.
Passei dias sem encontrar uma pérola que fosse. Finalmente, numa hora em que os homens haviam saído para o rio, enchi-me de coragem e acerquei-me da mulher, que ficava no acampamento e cuidava da comida. Era gorda, calçava sapatos de homem se meias e, sem me aproximar muito, pude sentir o cheiro do uísque barato. Estava sentada num toco de árvore, tomando café numa caneca de folha, e ficou algum tempo só olhando para mim. Preparava-me para virar as costas e fugir, quando ela perguntou: “Que foi, garoto?”
Sua voz era tão estranhamente maravilhosa, profunda e gutural, que me fez parar. Embora tivesse dito apenas três palavras, percebi instantaneamente que se sentia triste e só. Fitei-a durante muito tempo, e, quando dei por isso, murmurei, para disfarçar: “Posso fazer-lhe umas perguntas?”
Ela deu rum risinho, e o som do seu riso era tão calmo como o da voz.
“Pode, claro que pode”, disse ela.
“Não sou obrigada a responder se não quiser.”
Expliquei-lhe então que gostaria de aprender a procurar pérolas, que sabia abrir as ostras, mas não sabia como examinar a carne, a não ser deitando-a num balde e apalpando-a toda.
A mulher levantou-se e foi até um monte de ostras abertas. Um ciclone de moscas se ergueu quando ela se abaixou para apanhar uma. Voltou para junto de mim e mandou-me prestar atenção enquanto ela corria os polegares ao longo dos lados da concha, sob a carne, até nos pontos onde as pérolas, quando existem costumam estar. Explicou-me que a gente sentia as pérolas antes de vê-las, e que era melhor até fechar os olhos enquanto se apalpava sob a carne, para nos concentrarmos no sentido do tato.
“Quando você sentir uma, saberá o que é”, acrescentou. “Pegue-a então entre o polegar e o indicador e coloque-a sob o lábio superior. Depois de limpa-la bem na boca, cuspa-a dentro de um vidrinho.”
Parou de falar. Passados momentos, atrevi-me a olha-la e a perguntar: “É só isso?”
Com um movimento brusco, ela despejou a caneca, espalhando borras de café no campi, ficou olhando o fundo da caneca, como se houvesse ali uma pérola, e depois disse: “É só isso. Você não precisa mais nada.” Levantou-se pesadamente e suspirou.
“Obrigado”, agradeci, e dei as costas para me afastar.
Pelo canto do olho, vi-a voltar-se de novo para mim. Levou a mão ao rosto e disse, muito serena: “Não me agradeça, menino. Isto não é vida, acredite. Esqueça as pérolas. Vai morrer de fome tentando encontra-las.”

No dia seguinte, senti o primeiro nódulo sob o polegar e trouxe à luz a minha primeira perolazinha. Eram bem pequenina, e, embora não fosse completamente redonda, a sua cor deixou-me sem fôlego. Apressei-me a mete-la na boca, chupei até limpa-la e cuspi-a num frasquinho de remédio. Brilhava como um raio de sol aprisionado! Nesse dia achei outras duas pérolas pequenas, e até a minha família ficou entusiasmada com a minha descoberta. Ficamos à volta do lampião de querosene até muito depois da hora de me deitar, admirando as pérolas e falando delas.
Depois disso, deixou de haver tempo para mais nada. Buck, o meu cachorro, andava abatido e triste, porque eu não tinha tempo para caçar nem andar com ele, e os pescadores que me viam procurar com os pés ostras no leito do rio perguntavam-se que andaria tramando aquele garoto maluquinho. Andava com grandes olheiras, por me levantar muito cedo e ficar abrindo ostras muito tempo depois de os mosquitos terem reclamado a noite como sua.
Mas, quando calcei sapatos de novo e voltei para a escola, tinha um cálice cheio das mais belas pérolas que uma pessoa pode sonhar. Nenhuma era redonda o bastante para valer muito, eu sabia, mas isso não tinha a menor importância, porque eu não queria mesmo vende-las.
Até que chegou o dia em que fui à casa ao lado mostrar as pérolas ao novo hóspede da minha avó. Espalhara-as sobre a mesa de jogo, quando Buck irrompeu correndo pela sala e virou a mesa. As pérolas caíram e rolaram todas pela saída de ar quente da fornalha da minha avó.
Quase morri. Às vezes, ainda penso que uma parte de mim morreu mesmo naquela hora. Enfrentei o calor insuportável re remexi as cinzas e a fuligem que se tinha acumulado durante anos na velha fornalha, mas não encontrei uma única das minhas preciosas pérolas. Todo o meu verão estava perdido.
Mas agora, recordando, compreendo que não foi um verão perdido. Hoje sei que o verdadeiro valor não estava nas pérolas, mas no sonho. Jamais voltei a ter sonhos tão grandiosos, em todos estes anos, tampouco voltei a envolver-me numa aventura de forma tão absorvente e determinada. Ao perder as pérolas, aprendi a mais cruel de todas as lições: tudo na vida passa, só os sonhos perduram.

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