quinta-feira, maio 4

O presente de Natal

Fonte : Revista Seleções

Data : Dezembro de 1993

Autor : Shirley Bachelder

Existe sempre uma boa maneira de a gente consertar um erro.

Quando, naquela manhã, Bem entregava o leite em casa do meu primo, não aparentava seu habitual ar de felicidade. Homem franzino, de meia-idade, parecia estar de poucas conversas.

Estávamos em fins de novembro de 1962 e, recém-chegada àquele lugar, eu me regozijara ao tomar conhecimento de que os leiteiros ainda faziam entregas à porta da rua ali. Durante as semanas que passara em casa de meu primo, juntamente com meu marido e filhos, enquanto procurávamos casa, eu já me divertira com as respostas prontas e joviais de Bem.

Hoje, porém, ele era o retrato do desânimo, enquanto retirava a mercadoria de seus engradados. Após um longo e trabalhoso inquérito, consegui finalmente extorquir-lhe sua história. Algo embaraçado, ele me contou que dois clientes seus haviam abandonado a cidade sem terem saldado suas contas e que seria ele a pagar pelo prejuízo. Um dos dois devia apenas 10 dólares, mas o débito do outro totalizava 79, e este não havia deixado qualquer endereço. Bem se sentia consternado devido à sua tolice em ter permitido que uma dívida chegasse a tal ponto.

“Ela era uma mulher bonita”, me contou ele, “tinha seis filhos e esperava outro. Repetia sempre para mim: ‘Eu vou lhe pagar muito em breve, assim que meu marido arranjar um segundo emprego.’ Acreditei nela. Fui mesmo idiota! Achei que estava agindo certo, mas isso me serviu de lição. Fui enganado!”

só consegui lhe dizer: “Lamento muito.”

Quando voltei a vê-lo, no dia seguinte, ele parecia ainda mais irritado. Referia-se indignado àquelas crianças insuportáveis que tinham bebido seu leite. A tal família encantadora se transformara num bando de detestáveis fedelhos.

Demonstrei-lh novamente o meu pesar e não voltei a tocar no assunto. Mas, após esta última conversa, senti-me cada vez mais contagiada por seu problema, desejosa de ajuda-lo. Preocupava-me imaginar que esse incidente pudesse azedar a alma de uma pessoa de índole tão calorosa. Comecei então a bolar um jeito. Lembrando-me de que o Natal estava ás portas, recordei o que minha avó costumava dizer: “Se alguém tirar algo de você, dê-o de presente a ela; assim você nunca se sentirá roubada.”

Quando Bem voltou para entregar o leite, contei-lhe que descobrira uma solução que o faria sentir-se muito melhor em relação aos 79 dólares.

“Não vejo como”, me retorquiu ele. “Em todo caso, me diga qual é.”

“Dê o tal leite à mulher como se fosse um presente de Natal para crianças necessitadas.”

“A senhora deve estar brincando!”, exclamou ele. “Nem à minha mulher eu dou um presente de Natal tão caro!”

“A Bíblia diz, você sabe: ‘Eu era peregrino e recolhestes-me.’ Será essa a atitude que você terá tomado para com aquela mulher e seus filhos.”

“não acha mais correto dizer que ela me passou para trás? O problema aqui é que não foi a senhora quem perdeu os 79 dólares!”

Deixei para lá a coisa, mas ainda confiava em minha sugestão. Sempre que Bem voltava, gracejávamos sobre o assunto: “Então, já lhe ofereceu o leite?” perguntava-lhe.

“Não”, replicava ele, “mas estou pensando em oferecer à minha mulher um presente de 79 dólares, a não ser que apareça aí algum estouro de mãe para abusar da minha boa vontade.”

Notei que ele parecia cada vez menos tenso sempre que lhe repetia a pergunta. Por fim, seis dias antes do Natal, aconteceu o que eu tanto esperava. Ele apareceu todo sorridente, com um brilho nos olhos, exclamando:

“Consegui! Ofereci a ela o leite como presente de Natal. Não foi fácil, mas já não havia nada a perder. Eu já tinha ficado mesmo sem o meu dinheiro, não é verdade?”

“É isso mesmo”, afirmei, partilhando de sua alegria.”Ma você tem de sentir que agiu do fundo do coração.”

“Eu sei. Eu sinto e estou muito melhor. É por isso que tenho uma simpatia tão grande pelo Natal. Foi por minha causa que aquelas crianças puderam tomar seus flocos de cereais com muito leite.”

Passadas as férias, duas semanas mais tarde, numa ensolarada manhã de janeiro, vi o Bem correndo calçada acima. “A senhora nem imagina o que aconteceu!”, exclamou para mim, com os dentes à mostra.

Contou então que, quando estivera substituindo um leiteiro numa outra zona de distribuição, ouvira alguém chamá-lo pelo nome. Olhara por cima do ombro e vira uma mulher correndo em direção à rua, acenando com dinheiro. Reconheceu-a imediatamente – a tal mãe das criancinhas que não pagara a conta. Trazia um bebê envolto num pequeno lençol e seus longos cabelos castanhos caíam-lhe teimosamente sobre os olhos.

“Bem, espere um momento!”, gritava. “Arranjei o dinheiro para você.”

Bem parou o caminhão e saiu dele. “Puxa, eu lamento muito”, disse. “Sempre tive intenção de lhe pagar.” Explicou-lhe que, certa noite, o marido chegara a casa anunciando que tinha encontrado um apartamento mais acessível e que também arranjara um trabalho noturno. Com todas aquelas mudanças, ela se esqueceu de deixar um endereço para contato.

“Mas já juntei algum dinheiro”, informou. “Aqui estão 20 dólares para abater da minha conta.”

“Não tem importância”, replicou Bem. “Ela já está paga.”

“Como paga?” exclamou ela. “Não estou entendendo! Quem pagou?

“Eu paguei.”

Ela olhou para ele como se se tratasse do Anjo Gabriel e começou a chorar. “E então?”, perguntei. “Que foi que você fez?”

“eu não sabia que atitude tomar, por isso eu a abracei. Quando dei por mim, estava chorando também, sem ter a mínima idéia de por que. Pensei naquelas crianças tomando seus flocos com o leite e, nem imagina, me senti muito feliz por a senhor ter me convencido e agir dessa maneira.”

“E não aceitou os 20 dólares?”

“Não aceitei não”, me respondeu ele, indignado.

“Então eu não tinha dado a ela o leite como presente de Natal?”

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