quinta-feira, maio 4

Minha juventude em Damasco

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1981
Autor : Mounir Raphael Sa’dah

Um árabe cristão recorda os bons velhos tempos na Síria, durante o período entre 1914 e 1924.

Em abril, os pomares dos arredores de Damasco estavam em plena floração e todo mundo ia lá vê-los, como um meio de sacudir a letargia após o longo inverno, para saudar a primavera e, como costumávamos dizer, para “sentir o cheiro bom no ar”.
É claro que isso se passou há muito tempo, mas era uma tradição e, tal como outros incidentes da infância, permanece na minha memória.
Lembro-me de que sábado era o dia das limpezas. A lavadeira chegava logo de manhã cedo, colocava um enorme caldeirão na lareira da cozinha e enchia-o de água bombeada do poço do jardim. Deixava a roupa ferver um pouco, ensaboava-a, enxaguava-a várias vezes e ia pendura-la lá fora. Que alegria dormir naqueles lençóis e pijamas tão lavados, cheirando a sol!
Enquanto a lavadeira estava trabalhando na cozinha, nós, as crianças, tratávamos dos lampiões. Limpávamos a parte de vidro, que enchíamos com querosene comprado em latas de cinco litros, com uma cabeça de pele-vermelha gravada.
Também recordo as noites de verão, quando íamos para o terraço. Em pouco tempo toda a vizinhança confraternizava, passando de terraço em terraço. Muitas vezes ficávamos lá até a meia-noite, cantando, fofocando e mascando sementes torradas de melancia e abóbora.
Uma noite, a catedral ortodoxa grega, a um quarteirão de distância, pegou fogo. A fumaça e as labaredas metiam medo. Ainda me parece ver, no seu terraço, um vulto solitário, ajoelhado, de braços erguidos em oração, recortado contra o céu. Era o patriarca, suplicando a Deus misericórdia. O fogo foi dominado. Mais tarde, eu viria a pensar que o patriarca sabia muito bem que não era vontade de Deus que a catedral fosse destruída. Um muçulmano teria dito isso de outro modo (“Alá fará o que quiser, como quiser, se quiser, a quem quiser, quando quiser”) mas o princípio é o mesmo.
Pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, quando o Império Otomano estava prestes a aliar-se á Alemanha, a Academia da Missão Irlandesa, que eu freqüentava, foi fechada e confiscada como propriedade do inimigo. Por isso, fui enviado para a escola ortodoxa grega. Aí o professor nos iniciou no francês, o idioma do inimigo, proibido pelos turcos. Que ótimo incentivo para aprender uma língua! Um dia, fomos avisados de que inspetores turcos estavam a caminho da escola. Nayla, o professor, ordenou que jogássemos nossos livros de francês no fogão. Todos se queimaram, e ficamos sem livros até o fim do ano.
Minhas lembranças de guerra incluem também exemplos de fraternidade. A comida escasseava, por causa do bloqueio britânico e do afluxo de refugiados. Num dia de outono, meu pai chegou em casa trazendo o estoque de farinha para dois meses. Ouvi-o dizer a mamãe que não iríamos ter mais. “Comeremos esta”, disse ele, “e depois Deus há de providenciar.” Alguns dias mais tarde, a filha de um vizinho bateu à porta, perguntando se lhe “emprestávamos” 12 pães. Fui ter com mamãe e contei-lhe, com voz de menino de nove anos, cheia de aborrecimento. Sem hesitar, mamãe disse: “Dê-lhe o que ela pede!”
Antes do fim do ano, Damasco caía nas mãos das tropas árabes e britânicas, que avançavam, e não tardou que aparecesse comida. Deus havia providenciado.
Com a queda do Império Otomano, foi autorizada a reabertura da Academia da Missão Irlandesa, e eu retomei os estudos, desta vez na companhia de muçulmanos e judeus de Damasco.
Naquela época podíamos ser, e éramos todos amigos.
Não longe da minha casa, existia uma pequena mercearia, dirigida por um hajji ( muçulmano que fizera a hajj, peregrinação a Meca).
O movimento na loja era pouco, e os clientes eram sempre esperados com ansiedade. Um dia, por travessura, parei na mercearia ao ouvia a voz do almuadem. O hajji recusou-se a atender-me. Em vez disso, estendeu o seu tapete de oração, voltou-se para Meca e começou a rezar. Nesse dia, aprendi que muitas vezes somos forçados a escolher entre Deus e o dinheiro; para o hajji, a alma tinha prioridade. Apesar de toda a eloqüência do meu guia espiritual, ele não poderia ter sido mais convincente do que o merceeiro muçulmano foi naquela tarde.
A guerra começou a alterar a nossa atitude em relação aos europeus. À medida que lutavam entre si, fomos começando a considera-los homens comuns. Essa desilusão quanto às maravilhas do que era europeu incentivou o crescimento do sentimento nacionalista entre os árabes e nos fez lembrar que possuíamos incomensuráveis tesouros na nossa própria cultura sobre os quais podíamos construir algo.
Em Damasco, por exemplo, quando a autoridade otomana desapareceu, pondo fim a 400 anos de domínio estrangeiro, formaram-se espontaneamente grupos civis para manter a ordem. Esses grupos eram basicamente constituídos por muçulmanos, mas, para nós cristãos, isso não era desvantagem, pois sempre havíamos vivido em harmonia. Uma noite, ouvi o chefe de uma patrulha muçulmana que passava na vizinhança dizer :”Ya Shabab, caminhem em silêncio para não perturbar o sono dos nossos irmãos.”
Durante os dois anos seguintes esse espírito se manteve, e pra os sírios foi uma época maravilhosa.
No dia 18 de abril de 1920, o Conselho dos Primeiros-Ministros Aliados concedeu à França um mandato sobre a Síria. A resistência Síria teve pouca duração. As forças francesas derrotaram facilmente os sírios e ocuparam Damasco.
Apesar da presença francesa, a vida continuou. A cidade era grande; os campos circundantes eram abertos, lindos e variados. Havia colinas para galgar, córregos para vadear e a vida das ruas para observar.
Uma das coisas que eu sempre aguardava com interesse era o acender dos lampiões nas ruas. Apesar de haver eletricidade na cidade, as ruas laterais ainda eram iluminadas a querosene. Todos os dias, ao anoitecer, aparecia um homem carregando um cântaro, uma escada e um trapo. Enchia e acendia o lampião, depois descia a escada, deixando atrás de sim um rastro de luz.
Havia também o guarda-noturno. A gente o ouvia passar, batendo com sua pesada bengala nas pedras da caçada. Cumprimentava todos os transeuntes, para verificar suas identidades. Se a pessoa morava por ali, o guarda-noturno continuava tranqüilamente o seu caminho, mas, se se tratava de um estranho, ele soprava com força no seu apito para alertar o guarda-noturno do posto seguinte.
O ano letivo 1922-1923 foi o último que passei em Damasco; estava prestes a partir para a escola preparatória da universidade Americana de Beirute. Enquanto isso, descobrira uma biblioteca pertencente à Sociedade de São João de Damasco. Era um repositório de tesouros da literatura árabe e eu passei lá muito tempo lendo avidamente os clássicos. Existe uma espécie de encantamento na língua árabe; ela pode hipnotizar-nos com o seu ritmo. Até então, eu havia permanecido na periferia da cultura árabe, mas durante aquele ano decisivo comecei a apreciar o seu coração e a sua alma.
Tal como muitos nacionalistas árabes antes de mim, descobri que o fator principal de uma comunidade árabe não é a geografia ou a religião, nem um conjunto de ideais e idéias comuns, nem a tradição e a história partilhadas. Tudo isso são conseqüências. O fator central é que sabemos e falamos árabe.
Um dia, papai e eu estávamos na estação, esperando o trem para Beirute. Por qualquer razão incompreensível, meti a mão no bolso e dei todo o meu dinheiro sírio a papai. Mais tarde, compreendi o significado daquele gesto; era o símbolo de que eu estava penetrando num mundo com outras pretensões, outros valores. Quando o trem chegou, papai me ajudou a súber e se quedou na plataforma, com os olhos rasos de lágrimas. Eu ia a caminho, para longe de Damasco.

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