terça-feira, dezembro 20

Colonos na vizinhança

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1949

Autor : William Drake (condensado de “The American Magazine”)

A família Caperelli conseguiu criar um lar em ambiente que lhe era por certo bem hostil.

Os novos moradores caíram entre nós num lindo sábado de primavera, em 1941. esta nossa povoação é uma típica localidade semi-urbana de classe média, cujos habitantes são na maioria gente de “colarinho e gravata”. Nessas condições, os recém-chegados Caperellis tornaram-se o que há de menos desejável.

Papai Caperelli, homem de 50 anos e de físico possante, com uma cabeleira ondulada e olhos negros faiscantes, fez recuar o caminhão decrépito para entrar no lote vizinho ao nosso, e deu a mão para ajudar a mulher a descer. Então, da retaguarda do caminhão, vimos sair em cascata mais nove Caperellis – homens, mulheres e crianças – e, com eles, ferramentas, madeira velha, uma barraca, utensílios de cozinha, cestas com comida, um barril de cerveja, um rádio portátil, e um cachorro de aparência pouco recomendável!

Soltando gritos de júbilo, os Caperellis se espalharam por sobre o terreno da sua nova propriedade. Era quase meio hectare de verdadeira selva, pantanosa em certos pontos, coberta de densa vegetação de roseiras silvestres e de arbustos enfezados, mas os Caperellis tinham morado em um bairro pobre de uma grande cidade, desde que chegaram da Itália, cinco anos antes, e agora, ávidos de natureza, agarravam punhados de terra que esfarelavam entre os dedos, falando todos ao mesmo tempo numa algazarra tremenda.

Em seguida, armaram a barraca, fizeram uma fogueira enorme, tiraram as comedorias das cestas, abriram o rádio bem alto, e durante todo o dia cantaram e se divertiram. Quando a noite caiu, dividiram-se em duas turmas, e dormiram uns na barraca, outros no caminhão.

No dia seguinte, antes do anoitecer, tinham erigido no seu terreno uma rude cabana de papel alcatroado. Os vizinhos indignados, gente de classe média a cambar para a alta, reuniram-se em assembléia de protesto. Mas, depois de muito deblatera, chegou-se à irremediável conclusão de que ninguém podia impedir os Caperellis de fazerem o que muito bem entendessem em seu próprio terreno.

A família de imigrantes constituiu assim o seu reino pequenino e isolado em meio de um mundo hostil – Papai Caperelli, porem, compreendendo ser um dever cívico, ofereceu-se para fazer parte da brigada de bombeiros voluntários. Foi recusado. “Demasiado velho,” disse o chefe.

Todas as manhãs, durante a semana, os Caperellis adultos saíam no caminhão para ir trabalhar em uma obra, onde ganhavam bons salários. Quando regressavam, à tarde, descansavam apenas o tempo suficiente para o jantar que Mamãe Caperelli preparara numa fogueira, e lançavam-se ao trabalho com denodo – arrancando raízes, assentando as manilhas, e escavando para o alicerce da futura residência.

E as mulheres mourejavam não menos que os homens. Fizeram um vasto jardim, ajudaram a cavar os alicerces e construíram galinheiro, casa para os coelhos e abrigo para uma cabra.

A família trabalhava em comum todos os domingos desde o romper da manhã até ao escurecer. Até os guris da família manejavam as pás e enxadas, e mais tarde ajudaram a misturar o cimento. Nunca em minha vida conhecia uma família, mesmo nas estações de veraneio mais caras, que fosse capaz de divertir-se tanto como aqueles Caperellis, quando trabalhavam em mio de brados atroadores e canções em coro!

Chegado o tempo do frio, eles tinham completado a construção de um amplo porão e instalado água, gás e eletricidade com as suas próprias mãos. Isso lhes permitiu passaram a viver dentro de casa.

Nem a guerra conseguiu deter aquela atividade de pioneiros obstinados. Giuseppe, Rocco e Vincent foram convocados, e o tio Domenico arranjou emprego em uma fábrica de material de guerra. Ficou o Papai Caperelli sozinho com as mulheres e as crianças, mas assim mesmo se foi erguendo, acima do porão, a estrutura de dois andares de blocos de cimento. Depois, Mamãe Caperelli, Rosa e Juanita ultimaram a cobertura do telhado, enquanto os guris içavam os materiais de construção com cordas e roldanas.

Alguns dos vizinhos murmuravam entres dentes que era indigno, próprio de gente de classe inferior, as mulheres darem o espetáculo de trabalhar daquela maneira; mas eu tenho a impressão de que as distantes antepassadas desses vizinhos também não se tinham recusado a ajudar seus maridos, colocando a cobertura de suas cabanas.

Algo, porem, aconteceu logo depois, que veio determinar na comunidade uma franca mudança de atitude.

Certa manhã, a tragédia bateu à porta toda branquinha dos Bradleys, casal já idoso que morava em frente aos italianos. A senhora Bradley sofreu uma hemorragia cerebral, e o marido, que já estava entrevado pelo artritismo caiu sem sentidos ao tentar locomover-se da cama para o telefone. O mais que pode fazer antes de desmaiar foi bater na vidraça de uma janela, e gritar por socorro.

Os Caperellis ouviram-no gritar, e correram em auxilio. Ajudaram a conduzir a sra. Bradley ao hospital, e o tempo que ela esteve ausente fizeram todo o trabalho doméstico por ela e cozinharam para o semi-paralítico. Nem um centavo as mulheres da família Caperelli quiseram aceitar por seus serviços. “Então para que servem os vizinhos,” dizia Rosa, “se não pra ajudar uma pessoa num caso de necessidade?”

Passado tempo, poucas semanas antes de acabada a guerra, Vincent Caperelli morreu na frente do Pacífico. A notícia, quero crer, deixou todo o mundo um tanto envergonhado na nossa vizinhança.

Quando os outros rapazes regressaram da guerra e o tio Domenico voltou da fábrica de armamentos, ergueram-se as paredes de uma segunda casa, esta para o filho Giuseppe e sua mulher.

Mas o que realmente galvanizou, comoveu, surpreendeu e satisfez a nossa cidadezinha, foi a fase final dos empreendimentos construtivos dos Caperellis. O verão passado, Papai Caperelli comprou uma montanha de tijolos de segunda mão. Vinham ainda cobertos de argamassa seca, e à primeira vista não prestavam para nada; mas a família inteira meteu mãos à obra, afanosamente, separando os tijolos uns dos outros e limpando-os da argamassa. A pequena Angelina raspava os tijolos um por um com uma escova de aço, e Fernando, o de 3 anos, limpava-os criteriosamente com uma vassourinha.

Em seguida, Papai Caperelli, ajudado pelos filhos, começou a aplicar um revestimento novo aos seus prédios. Os tijolos usados tinham uma contextura suave, que falta aos tijolos novos, e aqueles horrores de ontem se transformaram em lindas casas.

Desde então, eles construíram duas garagens duplas, onde guardam os três automóveis que hoje possuem, alem do caminhão; plantaram grama, flores e arbustos decorativos. Ambas as casas são muito espaçosas, e se conservam imaculadamente asseadas. Cada uma tem dois banheiros, máquina de lavar roupa, refrigerador e congelador doméstico. Onde, faz agora oito anos, encontraram uma selva, os Caperellis possuem hoje, livre e alodial, uma pequena propriedade que deve valer bem uns 50 mil dólares.

Mas isso não é tudo: não menos importante é o lugar que eles souberam conquistar no respeito e afeição da sua comunidade. São hoje aceitos por todos, como aquilo que são de verdade: bons vizinhos e bons cidadãos. Dois dos membros da família pertencem ao Corpo de Bombeiros Voluntários.

Quanto aos pequenos, foram prontamente aceitos como companheiros pelos nossos filhos e os filhos dos outros vizinhos. Tony, que está agora no ginásio, quer ir para uma universidade estudar arquitetura, e Angelina tem esperança de tirar diploma de enfermeira.

Os Caperellis são hoje, portanto, membros plenamente acatados de uma comunidade que de começo os hostilizou. E, com franqueza, nós ganhamos com isso muito mais do que eles...

Nenhum comentário: