terça-feira, dezembro 20

Colóquio com uma rainha

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1949

Autor : Max Eastman

“É boa a sensação de ser rainha?” perguntei.

“Aqui na Grécia, pelo menos, é a melhor possível porque envolve um trabalho criador, que afasta o tédio comum à maioria das cortes.”

“Vossa Majestade se sente superior devido ao sangue real que tem?” A rainha Frederica é neta do kaiser Guilherme II, soberano por direito divino, e eu estava preparado para perdoa-la se me respondesse afirmativamente.

“Não,” respondeu, enfaticamente, “em absoluto.”

“Qual a sensação que Vossa Majestade teve, em menina, ao descobrir que era princesa?”

Não se tratava de um interrogatório psicanalítico ou de uma Inquisição; sorríamos ambos, cordialmente. Eu havia chegado ao palácio num curioso estado de espírito. Republicano ardente, precisava manter uma certa arrogância cortês; nada de reverências e salamaleques. Como simples plebeu que sou, sentia-me nervoso e acanhado. A gentil dama de companhia atendeu-me com grande deferência e acalmou-me os nervos com uma xícara de café turco na ante-sala. (Na Grécia, nada se consegue a n~´ao ser por meio de uma boa xícara de café.) Mas eu ainda estava trêmulo quando fui levado à presença da soberana.

Presença de uma adorável jovem, esbelta, de olhos vivos, num elegante vestido de linho cor de rosa, a qual caminhava em minha direção com um sorriso nos lábios, saudando-me graciosamente: “Muito prazer em conhece-lo!”

Embora seja mãe de três filhos, parece quase uma menina, com os olhos sempre alegres e um leve arrebitado do nariz, que lhe dão um encanto extraordinário.

Sentamo-nos em um sofá em frente à lareira, numa sala que mais parecia de um modesto lar que de um palácio, e pusemo-nos a conversar como se fôssemos amigos de muitos anos. Por isso, pareceu mesmo natural quando, pouco depois, observei, num sorriso: “Desde menino que, por simples curiosidade, desejo fazer a um rei ou a uma rainha algumas perguntas de natureza pessoal.”

“Pois que venham as perguntas,” disse ela, com afabilidade. “Estou igualmente curiosa para conhece-las.”

Foi assim que comecei o diálogo transcrito linhas atrás. E quando perguntei como se sentira, em menina, a rainha respondeu:

“Senti-me algo perplexa. Costumava discutir o assunto comigo mesma, com toda a seriedade. Com que direito pode alguém colocar-se acima dos demais sem ter lutado para chegar lá? Esta reflexão me perturbou por muito tempo e o senhor sabe como foi que conseguir apaziguar as minhas dúvidas? Lendo Platão. Como o senhor deve lembrar-se, ele dividiu os cidadãos em diferentes grupos: os trabalhadores e comerciantes, os soldados e os líderes. Cada grupo tinha as suas funções específicas e os líderes, afim de poderem preencher as suas, tinham de ser educados e treinados especialmente desde a infância. Evidentemente, para poderem receber este treinamento, tinham de ser escolhidos previamente. Fiquei em paz com a minha consciência ao decidir usar da minha própria situação hereditária como o faziam os líderes na doutrina de Platão.”

Excetuados os comunistas fanáticos, dificilmente se encontrará uma pessoa na Grécia que não tenha louvores para o resultado desta decisão. Desde o Ministro do Exterior (antigo primeiro ministro), Tsaldaris – que me disse: “Ela não só tem bom senso como noção exata dos acontecimentos” – aos recrutas de um acampamento militar que a carregaram nos ombros até o alto de uma colina, onde a soberana partilhou o rancho com eles, é unânime a opinião de que ela é uma criatura de dotes excepcionais, uma benção para o país.

Socialmente, a Grécia é um país tão democrático como qualquer outro. Não tem aristocracia, nem duques, condes ou barões – apenas o rei, a rainha e o povo. É o que torna possível os contatos diretos entre eles, prática que o rei Paulo e a rainha Frederica tem cultivado intensamente. Desde que subiram ao trono, em abril de 1947*, tem passado a maior parte do tempo viajando através das áreas mais desoladas do país, fazendo amigos no povo, ouvindo-lhes as queixas, inquirindo das suas necessidades. “Praticamente, ainda não habitamos o palácio,” disse-me a rainha.

Viajar pelo devastado interior do país é extremamente cansativo, alem de ser, ou ter sido, uma temeridade, devido à presença de bandidos nas montanhas, comandados pelos comunistas. Mas tais percalços intimidaram tão pouco a rainha quanto o rei, um rapagão desempenado e atlético. Ao chegarem a uma cidade, param o carro nas imediações e caminham em meio do povo até a rua principal. Não há arautos, cerimonial, guardas reais, polícias montadas e nem mesmo sinais da presença de agentes da polícia secreta. Qualquer pessoa pode dirigir-se aos monarcas, caminhar a seu lado, chegar bem perto deles e tirar-lhes fotografias. No edifício da prefeitura, dão audiência pública e discutem livremente os problemas da região ou do país, mostrando-se incansáveis. Dificilmente algum outro estadista conhecerá o seu país de forma tão pessoal e direta como o rei Paulo e a rainha Frederica da Grécia.

“Quer V. M. dizer, precisamente, quando se refere ao trabalho criador da rainha da Grécia?”

“Vou dar-lhe alguns exemplos concretos,” respondeu-me a soberana. “A Grécia, como conseqüência do seu esforço titânico ao lado dos aliados, sofreu mais do que qualquer outro país do mundo. Primeiro os italianos, depois os nazistas, e agora os comunistas atacaram, bombardearam e devastaram o país a ponto de arrasaram completamente certas regiões. Quase quatro mil cidades e aldeias foram destruídas. Ainda agora, de quando em vez, os comunistas devastam mais uma. O senhor sabe o que isto significa par uma mulher? Significa que o país está cheio de crianças famintas, sem amor e sem lar. Esta é uma das minhas tarefas – salvar esses órfãos da morte e evitar que cresçam física moralmente deformados. Em suma, fazer desse material humano uma geração nova, sadia de corpo e forte de espírito como o foram os seus pais, que tombaram lutando pela liberdade. Não acha um trabalho criador?”

A cabeça da rainha estava coroada de cachos castanhos arrumados com tanta naturalidade que lhe davam mais o aspecto de uma estudante de universidade do que de uma soberana. Não usava mais jóias do que uma jovem universitária. Apenas duas pedras de jade verde, encastoadas numa pulseira de prata, adornavam-lhe o braço esquerdo. As sobrancelhas, apesar de muito espessas, não eram arrancadas, atributo de realeza que eu gostaria que as jovens dos nossos países democráticos tivessem o bom gosto de imitar. Em conjunto, deu-me a soberana uma tal impressão de naturalidade que só pode revelar o seu verdadeiro feitio ou então a mais extraordinária vocação teatral.

“Organizei um comitê com esse objetivo,” continuou ela, “e já temos sob nos nossos cuidados 18 mil dessas crianças, recolhidas a 48 centros diferentes. Já iniciamos a construção de novos centros para abrigar mais 25 mil crianças.”

Eu havia visitado um desses centros na praia de Santo André, onde se encontram 700 meninos e meninas de 6 a 14 anos de idade. Examinei as camas, provei do almoço que comiam, conversei com os pais adotivos, visitei as salas de aula, a nova capelinha, toda branca; observei-os na hora de recreio ou regando os pequeninos canteiros de legumes. O prédio foram outrora um cassino bombardeado pelos alemães e reconstruído para servir de lar para os órfãos da guerra. Até mesmo os menorezinhos pareciam estar felizes.

Os olhos da rainha, de um azul escuro, iluminaram-se quando lhe descrevi a minha visita.

“Tudo foi feito sem um centavo, sequer, do Governo,” disse ela, “e sem um centavo do estrangeiro. O meu primeiro apelo, divulgado pelo rádio e pelos jornais, trouxe donativos no valor de 4 milhões de dólares. Todos contribuíram, pobres ou ricos. Os sindicatos resolveram que todos dessem um domingo de trabalho, o que rendeu cerca de 240 mil dólares. Os comunistas, naturalmente, protestaram vivamente chamando-nos de monarco facistas e dizendo aos operários que a rainha lhes estava roubando o dia de salário. Os sindicatos, porem, mantiveram-se inabaláveis. Os operários figuram entre os melhores elementos do país. São esclarecidos e sabem muito bem que são os comunistas os autores dos ataques e depredações que deixam na orfandade as crianças que procuramos socorrer.”

Eu soube, por outra fonte, da resolução com que a rainha se entregou ao salvamento dessas crianças. O rei estava doente, em janeiro de 1948, quando Konitsa, cidade chave próxima à fronteira da Albânia, foi recapturada pelas ações legais. Havia 250 crianças num acampamento em Lonitsa e a cidade se encontrava sediada e sob bombardeio havia oito dias. A rainha, que se achava em Janina, acorreu em socorro dessas crianças. Mas o comandante em chefe disse-lhe que a estrada estava minada e não oferecia a menor segurança.

“Muito bem,” retrucou ela, “irei a cavalo, pelas montanhas.”

Mas isso seria ainda mais perigoso, protestou o general. E como ela insistisse em ir por um ou outro dos caminhos, ele acabou concordando em que a rainha fosse pela estrada regular, sob a condição de ser guardado o maior sigilo possível. Uma das pontes fora destruída e ela teve de caminhar vários quilômetros, pela madrugada, até encontrar um jeep que a esperava do outro lado. Ninguém o soube, então, e são poucos os que sabem, hoje, que a rainha da Grécia foi o primeiro civil a entrar em Konitsa, depois da recaptura da cidade. Foi saudade com lágrimas pelos soldados extenuados pelo combate e exultantes pela vitória e teve de fazer-lhes um discurso na praça pública. A própria rainha contou-me como foi o discurso.

“Era o primeiro que fazia em toda a minha vida,” disse ela, “e fiquei realmente aterrada. Durante um minuto, confesso que não sabia o que dizer.”

“Mas o que foi que V. M. disse?”

“Apenas uma frase. Limitei-me a dizer: Meu marido está doente e o meu lugar deveria ser a seu lado, mas acho que ele vos ama ainda mais do que a mim, pois me enviou para acompanhar-vos, em lugar dele.”

A rainha sempre se refere a “meu marido”, nunca “o rei”, mas descreve as realizações dele com tanto entusiasmo como as suas próprias. Entre outras atividades, está ele dirigindo sete escolas agrícolas espalhadas no país e inaugurou recentemente em Laros, no Dodecaneso, um reformatório modelo para jovens “bandidos”, de 16 a 20 anos. Na Grécia, eles são chamados “bandidos” e não comunistas, nem vermelhos ou nem mesmo guerrilheiros. E, em sua maior parte, o são, realmente, segundo pude constatar pessoalmente ao tentar identifica algum ideal político entre cerca de 300 deles, que entrevistei na prisão. No dia da inauguração, o rei fez um discurso aos rapazes, muitos dos quais, ou mesmo quase todos, haviam cometido assassinatos, incêndios ou assaltos a mão armada em estradas. A rainha reproduziu-me alguns trechos desse discurso:

“Não guardamos provas contra ninguém. Tudo quanto se refere ao passado foi destruído. Só pensamos no futuro de vocês. Queremos prepara-los para enfrentar com sabedoria os problemas da vida e transforma-los em bons cidadãos da Grécia.”

Há um abismo entre a frieza da República de Platão e o monarquismo social que a rainha me descrevia. O que me dizia tinha muito mais de cristão que de platônico.

Conscientemente ou não, a rainha planeja introduzir inovações radicais no sistema que Platão delineou para a formação dos líderes. Tenciona, segundo me disse, mandar o filho, o príncipe herdeiro, trabalhar nas minas e fazendas da Grécia a fim de conhecer, por experiência própria, os problemas da vida com que se defronta a maioria dos homens.

“Antes que se vá,” disse ela quando me levantei, “quero contar-lhe uma pequena história. Uma história verdadeira.”

“Nossa única preocupação, quando fundamos o reformatório de Laros era com relação aos habitantes da ilha. Como o senhor sabe, faz só dois anos que as Ilhas do Dodecaneso foram devolvidas à Grécia e podia parecer até inamistoso enviar-lhes 700 bandidos como um gesto de boas vindas! Ficamos realmente apreensivos quanto à reação que teriam os habitantes. Os rapazes chegaram à ilha duas semanas antes do Domingo de Páscoa. Nesse dia, o povo de Laros fez uma procissão e marchou até o reformatório carregando uma bandeira grega. Pediram que os rapazes fossem concentrados no pátio e o padre, que caminhava à frente da procissão, dirigiu-lhes a palavra:

“Nós, os cidadãos de Laros, lutamos 700 anos para reconquistar esta bandeira. Sabemos bem o que ela representa. E vamos confia-la à vossa guarda porque estamos certos de que sabereis defende-la.”

“Os rapazes ficaram profundamente comovidos. Muitos não contiveram e exclamaram que não eram dignos sequer de toca-la: - Chegamos a lugar contra a nossa própria pátria! Mas os habitantes da vila insistiram e os rapazes acabaram aceitando a bandeira que foi por eles mesmos içada à frente do prédio.”

“Este é o tipo de compressão e ajuda que nos dá o povo grego. O senhor ainda tem alguma dúvida sobre as minhas razões para estar encantada de ser rainha da Grécia?”

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