terça-feira, dezembro 20

Perseguido pelos cães

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1947

Autor : Daniel P. Mannix (condensado de “The Saturdeay Evening Post”)

Empregado no balcão de uma sorveteria de Wisconsin, ele faz maravilhas com seus cachorros de olhos tristes.

A força policial tinha seguido a pista de Ray Olson, suspeito do crime de rapto, até uma cabana isolada perto de Cable, no Wisconsin. Quando dois dos policiais se acercavam cautelosamente da porta, Olson abriu fogo e os matou; depois, tendo-lhes tirado as pistolas, mergulhou nos bosques, onde ninguém ousava persegui-lo. O xerife deu então ordem: “Vão buscar o George Brooks com os cães sabujos!”

Brooks é um homem magro e sério, e um dos poucos que neste mundo conhecem a arte antiga e curiosa de trabalhar com cachorros na caça ao homem. Nestes últimos 15 anos seus serviços já foram requisitados mais de duas mil vezes. Seus cachorros tem farejado o rasto de assassinos, crianças perdidas, loucos fugidos do manicômio e penitenciários evadidos.

No caso de Olson, George Brooks viu-se a braços com um da das tarefas mais sérias de sua carreira. “Para trabalhar com os sabujos,” explica ele, “a gente precisa saber por onde é que o homem passou, ou ter um “guia olfativo” – qualquer cosa em que ele tenha pegado, para que os cães possam conhecer-lhe o cheiro. Na altura em que cheguei a Cable, bem umas mil pessoas já teriam andado em volta dos cadáveres das autoridades. Não era possível encontrar o guia olfativo, nada de que eu pudesse ter certeza que só Olson havia tocado.”

“Em face disso, levei os cães para dar uma volta de quase um quilometro de raio, em torno da cabana; eles descobriram um rasto, e levantaram os olhos para mim, como que a perguntar o que haviam de fazer. Eu disse: O homem fugiu. E eles se lançaram na pista. Durante três dias, eu, os cachorros e 175 policias seguimos aquela pista. Encontramos ruínas fumegantes de cabanas incendiadas. Olson ateava foto a todos os lugares onde dormia, para ter certeza de que não deixava rasto que os cães pudessem farejar. Mas os meus sabujos davam uma volta em torno do lugar; farejando, encontravam a pista do outro lado, e continuavam a perseguição.”

Em seguida; Olson se refugiou em uma zona lacustre, toda semeada de ilhotas minúsculas. Sabendo que o cheiro não persiste em cima da água, ele fazia jangadas, e viajava milhas e milhas ao longo dos canais, por entre as ilhotas. Mas ele tinha que descer em algum lugar e os cães sempre acabavam descobrindo o rasto dele. Passadas duas semana, certo dia Olson desceu em terra firme, para cortar caminho. Brooks podia ver, pela direção em que os cães avançavam, que o fugitivo se encaminhava para um lago distante. Uma parte da expedição meteu-se em carros para lhe ir cortar a retirada. Quando se aproximavam do lago, avistaram Olson correndo para um bote; mas este não pode correr muito: logo caiu varado por uma saraivada de balas...

George Brooks não tem na vida nenhum interesse alem dos seus cães. Nunca lê uma revista nem um livro, e nunca viu um filme falado. A fim de acompanhar os seus cachorros, tem uma vida espartana, e se alimenta quase exclusivamente de carne picada. Tem hoje 51 anos de idade; em rapaz dedicava-se a treinar perdigueiros, e depois consagrou-se aos canzarrões. “Com eles pode-se trabalhar o ano inteiro, e uma vez que a gente vê esses grandes cachorros farejando a pista dum foragido, nunca mais é capaz de se interessar por outra caçada qualquer,” explica ele.

Quando jovem, tencionava tornar-se farmacêutico mas, já na escola superior, faltou-lhe o dinheiro, e teve que se empregar no balcão de uma sorveteria. Isso se passou há 25 anos, e George ainda está lá... Quando o chamam para ir com os seus cães à procura de alguém – e recebe três ou quatro chamados por semana – deixa a casa por algumas horas e, em certos casos, até mesmo durante dias. O dono da loja, William Donadurer, refere-se a ele nestes termos: “George nunca cobra dinheiro pelos serviços de seus cachorros. Esses cães tem feito um bem incalculável, e se ele pode consagrar-lhes tanto tempo e dinheiro, eu acho que, por minha parte, posso também sacrificar os seus serviços...”

O primeiro cão de George, Lady, tinha somente quatro meses de idade quando ele o importou da Inglaterra, em 1932. mal ele tivera tempo de fazer a cama para a cachorrinha, num canto da garagem, quando um xerife local o chamou: “Ouvi dizer que você acaba de receber um cão de caça,” disse o funcionário mantenedor da ordem. “Faça o favor de trazê-lo para aqui, já. Três homens roubaram um banco em Mindoro. Um deles nós conseguimos balear através do para brisa do carro em que iam fugindo. Os outros dois meteram-se na floresta.”

George ainda tentou explicar que Lady era muito novinha, sem treinamento, e alem disso estava enfraquecida pela longa viagem.

“Vou dar autoridade oficial a você e ao seu cachorro,” insistiu o xerife. “Esteja aqui dentro de uma hora.”

Uma hora depois, George e a sua Lady chegavam ao local onde se encontrava o carro espatifado dos salteadores. Ao lado, ainda estava o cadáver do ladrão. Lady começou logo, por instinto, a farejar uma pista, coisa pouco comum em um cachorro sem treino. Farejou o rasto dos fugitivos até a margem do rio Black. O xerife concluiu que os ladrões tinham atravessado a corrente a nado, mas Lady se recusou a sair daquele lugar. Finalmente o xerife ordenou que George arrastasse a cadela à força dali para fora, e experimentasse pô-la a farejar na outra margem. Lady não foi capaz de dar com pista nenhuma. Mais tarde, ambos os assaltantes foram presos, e George foi de propósito à penitenciária, para averiguar como é que eles tinham desorientado a sua cachorra.

Os homens se riram: “Nós estávamos metidos debaixo da água, a dois metros da margem, respirando por uns caniços ocos! Se você tivesse soltado essa cachorra, ela tinha pegado a gente direitinho.”

Desde então, George já teve mais de quarenta sabujos. Desses, ele considera cinco como verdadeiramente “grandes”. Os sabujos são selecionados e cruzados especialmente para terem um focinho muito largo, capaz de sentir qualquer cheiro; beiços pendentes que possam, à maneira de leques, agitar os odores do terreno quando o cachorro fareja; e grandes orelhas caídas, que formam com que uma bolsa à retaguarda do nariz do cão, para reter os cheiros, quando o animal corre de cabeça levantada. Mas um faro realmente bom, num cachorro, é um dom tão precioso como o de uma grande voz em um cantor lírico! Também é preciso que o cão esteja disposto a trabalhar num rasto dias e dias seguidos e seja capaz de suportar as condições mais adversas. Tem acontecido casos de George treinar um cão durante mais de um ano, para no fim chegar à conclusão de que o animal não é capaz de agüentar as dificuldades de uma tarefa pesada.

O treino se faz com o auxilio de um ajudante, que, postado a certa distância, chama o cachorrinho. O ajudante dá de comer ao cão, que delira de alegria com este jogo inesperado. Passados alguns dias, quando os cachorros se dirigem para ele, o ajudante dobra uma esquina, correndo, deixando cair pelo caminho um lenço ou qualquer outro objeto que possa servir de guia olfativo. George incita o cão a farejar o lenço, repetindo: “O homem fugiu!” Gradualmente o treino vai se tornando mais complicado. O ajudante passa pela parte central da cidade, para que o animal se habitue a selecionar determinado cheiro no labirinto de cheiros das calçadas apinhadas de gente, e através do tráfego mais intenso. Passado algum tempo, o cachorro não vive senão para aquilo: destrinçar pistas no meio da confusão de odores.

George anda sempre com os cachorros atados à correia. Um cão que segue um rasto é indiferente a tudo o mais, e é capaz de se deixar esborrachar por um auto que se atravesse em seu caminho, ou por um trem que avance direto a ele. O sabujo é um animal possante, e quando pega um rasto deixa-se desvairar e puxa a trela como um touro. Isso obriga o dono a usar um cinturão de couro grosso e muito largo, com anéis a toda a volta, onde se prendem as correias. Um homem que levasse as trelas na mão não poderia agüentar o esforço por mais de uma ou duas horas; mas, graças ao cinturão, George consegue andar durante dias, muito embora o corpo lhe fique coberto de equimoses causadas pelos puxões incessantes dos animais.

Os cães que correm soltos são treinados a dar latidos, de modo que o dono possa segui-los; mas George ensina a seus a trabalhar calados. Uma criança perdida pode-se assustar com os latidos, a ponto de perder a cabeça e se atirar duma ribanceira ou se precipitar num rio. Os latidos servem também de aviso aos criminosos. Como é indispensável que os cães se exercitem todos os dias, e George se recusa a deixá-los sair do canil quando não seja para pô-los a seguir uma pista, é lhe preciso recorrer aos serviços de meninos que, por alguns níqueis, se prestam a fazer pistas para os cachorros. Os pequenos procuram , por todos os meios, iludir os cachorros, mas George crê que ninguém é capaz de ludibriar um sabujo.

Muita gente acredita vagamente que o cheiro de uma pessoa impregna de certo modo as suas pegadas; na realidade, o cheiro é emitido pelo corpo todo. Fica pairando no ar como uma fina névoa, à passagem da pessoa, e depois, pouco a pouco, vai caindo no chão. Os sabujos são muitas vezes capazes de achar no ar a pista de um homem, à distância de quase um quilômetro, se uma brisa úmida estiver soprando na direção deles. Um amigo apostou um dia com George que os cães dele não seriam capazes de pega-lo. Passou horas descrevendo um curso complicado, em seguida voltou ao ponto de partida para observar o trabalho dos cães: quando George lhes deu o guia olfativo, os cachorros não fizeram caso algum da pista – limitaram-se a caminhar direitinho ao lugar onde o amigo se escondera.

Dois meninos a quem George pagara para fazer pistas, estavam tão resolvidos a atrapalhar a pesquisa dos cães, que passaram uma hora debatendo-se através dum pântano, metidos até à cintura em água fria. Quando os animais se acercaram do lugar, farejaram no ar o rasto ainda fresco dos meninos, lá do outro lado do pântano, deram a volta a este, e em cinco minutos encontraram os garotos exaustos de cansaço!

Acontece por vezes que um cachorro é capaz de seguir até o rasto de um homem que vá de automóvel. Os cães de George ajudaram a prender um gatuno que havia roubado um posto de gasolina. A primeira coisa que ele fez foi deixar que os cães cheirassem a caixa registradora arrombada. Os cães seguiram o cheiro do homem por cinco quarteirões; aí, sentando-se em terra, deram a entender que ele fizera alguma coisa de inesperado – no caso, tomara um automóvel que o esperava ali. De repente, King, o melhor cão que George já possuiu, recomeçou a farejar. Caminhou mais um quarteirão e meio, até onde o homem descera do carro para entrar em casa. King podia bem ter farejado no ar o rasto ainda fresco do homem, há adiante, mas havia uma brisa forte soprando desse lado, e George acha que ela levou o cheiro do gatuno pelas janelas do carro, e o odor se foi depositar ao longo da base dos edifícios.

Na terra mole e úmida, o odor pode durar quase 15 dias. Na terra seca e quente desaparece em poucas horas. Parece que parte dele se mete pela terra abaixo, pois quando em busca de uma pista já velha, “fria”, o cachorro esgaravata na terra, fareja e continua a andar. Os sabujos chegam a revolver intencionalmente a folhagem caída por terra, para dar com um rasto que persiste em baixo dela.

George crê que o feito mais extraordinário que seus cachorros já realizaram teve lugar em Minesota. Depois de ter escrito uma carta despedindo-se da vida, um homem desapareceu, e havia bem uma semana que as autoridades o andavam procurando. Encontraram o carro dele, abandonado à beira de uma estrada, e George pôs King na trilha do tênue cheiro deixado pelo desaparecido. King guiou os homens até uma cidade vizinha, onde continuou farejando a calçada, muito embora incontáveis pessoas já houvessem passado ali nos seis dias decorridos desde o desaparecimento do homem. Foram dar com o suposto suicida almoçando em um restaurante.

Mas a maior missão que George já teve, foi o caso de Jens Thompson. Este era um lavrador que um dia teve uma desavença com os vizinhos, matou a tiro quatro deles, e depois fugiu par a floresta. O crime ocorreu em tempo de seca. Já sabemos que o terreno seco é pouco propicio ao farejo, mas durante quatro dias os batedores seguiram os cães através de espessas matas. King, o famoso canzarrão de George, tanto farejou a poeira quente e seca do chão, que lhe sobreveio uma hemorragia pulmonar! Assim mesmo, foi para a frente. Ao quinto dia, os cães iam atravessando um milharal, quando King parou e desenterrou com as patas um sabugo que alguém tinha roído. Jens se detivera ali para comer milho e depois tinha enterrado o sabugo!

Nos dez dias seguintes, George dormiu no rasto do fugitivo. A dada altura, Thompson, desesperado, pulara de uma rocha. Os cachorros obstinados deram o salto – e George foi atrás deles, preso pelas trelas!

Fazendo um esforço supremo para despistar os cães, o fugitivo levou quase um dia inteiro para subir um morro praticamente inacessível, e depois retornou seguindo uma linha paralela ao seu próprio rasto. Ao regressar, a chuva começou a cair. Quando os cães se acercaram do morro puderam farejar no ar úmido a pista ainda fresca. Em vez de subir o morro, foram diretamente à nova trilha. O fugitivo, exausto, rendeu-se sem opor resistência.

Depois da perseguição aos criminosos, a maioria dos casos confiados a George é de crianças perdidas. Os cachorros são idéias para esse gênero de trabalho, mas muitos pais receiam utiliza-los, devido à noção errônea de que os animais podem atacar a criança e machuca-la. A verdade, porem, é que os sabujos são bastante mansos. Foram criados primitivamente como cães de caça, e o seu aterrador denominativo em inglês Bloodhounds (Cachorros de sangue) significa somente que eram cães de puro sangue, do mesmo modo que fazemos referencia a cavalos puro sangue.

Muita gente tem perguntado a George por que razão é que ele não larga o seu emprego no balcão da sorveteria, para se dedicar de todo a seus cães.

“Se eu fizesse isso,” confessou-me ele, “nunca mais poderia empregar meus cães na descoberta de um caso sem cobrar pelo serviço. Muitos dos chamados que recebo são de pessoas que não tem posses para me pagar: o lavrador cuja mulher desapareceu em uma nevasca, ou o pescador cujo filho se extraviou. Enquanto eu estiver no emprego, tenho ordenado certo, e posso sair com os cães sempre que me apetece. É assim que eu prefiro!”

Nenhum comentário: