sábado, julho 19

O sino

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2001
Autor : Douglas Wells

O orgulho da aldeia fora escondido de nazistas e soviéticos. Agora, ninguém conseguia encontra-lo.

Eu estava no centro de informações turísticas, ansioso pela minha segunda experiência como voluntário do Peace Corps. Na verdade, era apenas a terceira temporada de turismo de Hiiumaa, agora que a Estônia reconquistara sua independência.
Apesar de já ter conhecido muitos personagens interessantes, nada me preparara para o homem que surgiu naquele dia. Aparentava uns 70 anos e tinha uma calva no alto da cabeça, com grandes tufos de cabelos brancos de ambos os lados, como se saísse fumaça de suas orelhas.
- Você é Douglas Wells? – perguntou, em estoniano, segurando a borda da mesa.
- Sou – respondi. – Em que posso ajuda-lo?
- Meu nome é Jetter Tull. Vocês ainda tem aquele detector de metais?
- Por quê? – perguntei.
- Você tem de me ajudar – disse ele. – Precisamos encontrar o relógio!
- Que relógio?
- O relógio da igreja que enterraram há 50 anos – explicou, a voz baixa e rouca. – O tempo está se esgotando!
Eu não imaginava por que aquele homem estaria tão aflito por causa de um relógio velho. Mas ele tinha um ar sério e seus olhos azuis eram penetrantes e intensos. Mesmo contrariando meu bom senso, peguei o detector de metais e fomos juntos de carro para o sul da ilha. No trajeto, Tull começou a falar. Fiquei ali escutando, fascinado com sua história.

Tudo começara em meados de 1943, quando os alemães estavam sendo expulsos da Rússia. Por causa da falta de matéria-prima, disse Tull, tanto os alemães como os soviéticos andavam roubando metais. A estocagem era punida com o pelotão de fuzilamento.
Os relógios de algumas igrejas de Hiiumaa já haviam desaparecido, continuou ele, e a pequena aldeia de Emmaste temia ser a próxima. Orgulho da aldeia, o relógio pesava cerca de 180 quilos, era de bronze maciço e estava na torre desde 1925.
Fiquei intrigado com as palavras de Tull – não podia imaginar um relógio de bronze daquele tamanho. Mas não quis interromper a história.
Ele explicou que uma noite, em junho de 1943, seis homens da aldeia enterraram em segredo o relógio na floresta, perto de Emmaste. Planejavam devolve-lo à torre da igreja após a guerra.
Mas não foi o que aconteceu. Terminada a guerra, um dos rapazes foi mandado para a Sibéria e morreu. Os outros cinco, entre eles Einar Tark, fugiram para a Suécia antes da chegada do exército soviético. Um deles, Theodore Pruul, foi capturado e voltou a Hiiumaa depois da guerra. Quando os soviéticos retonaram o controla da ilha, ele se manteve em silêncio, temendo as conseqüências. Seria difícil explicar o relógio de bronze enterrado.
Enquanto isso, outros moradores haviam procurado o relógio, sem êxito. Acabaram concluindo que Tark, ainda vivo na Suécia, vendera-o . Essa era, então, a missão de Jetter Tull em Hiiumaa: encontrar o relógio e limpar o nome do amigo antes que ele morresse.
Infelizmente o tempo nublara a memória de Tark. Nem ele nem Pruul se lembravam da exata localização do relógio.

Quando chegamos a Emmaste, Tull me guiou até um local próximo a uma antiga fazenda. Para lá e para cá, de um lado para o outro, fui andando com o detector de metais, o homem logo atrás de mim. A cada bipe do aparelho, ele saltava à frente e começava a cavar. Mas nossas buscas foram em vão. Ao anoitecer, resolvi desistir.
“Talvez outra pessoa o tenha desenterrado e vendido”, comentei. “Em todo caso, aqui não está.”
Voltamos para meu apartamento, onde ele se despediu, apertando-me a mão, mas notei que sua mente estava em outro lugar. Fiquei feliz por me ver livre de tudo aquilo.
Certo dia, em dezembro, eu estava no centro de informações, olhando a chuva e o granizo que caíam do lado de fora. Não havia nenhum turista, por isso fiquei surpreso ao ouvir a porta se abrir e alguém limpar os pés no capacho.
Uma cabeça apareceu no vão da porta e uma das mãos tirou o gorro de lã que a cobria, revelando as sobrancelhas espessas e os cabelos brancos inconfundíveis.
- Tenho novidades! – exclamou Tull.
Ele fora à Suécia visitar Tark, que lhe disse que tínhamos procurado no lugar errado.
Olhei com desânimo o granizo caindo lá fora.
- O senhor poderia voltar outro dia? – perguntei. – O tempo está feio e não creio que o relógio vá sair de onde está.
Tull, porém, não quis saber de nada.
- A honra de um homem está em jogo! – protestou.

Seguimos em silêncio no carro, os limpadores de pára-brisas marcando um ritmo regular. Eram cerca de 13 horas, mas já começava a escurecer.
Paramos numa estrada de cascalho cerca de um quilômetro ao sul de onde tínhamos feito a primeira busca. Havia um arvoredo, um lava-carros abandonado e o que poderia ter sido uma instalação para secagem de cereais. Parecia um local bem improvável, mas Tull tirou uma pá da mala do carro e me conduziu na direção do lava-carros.
Conecei a andar para a frente a para trás no meio do mato rasteiro, passando o detector em volta das árvores e no fosso à margem da estrada. Os únicos ruídos eram o do nosso detector e da chuva pingando das folhas. Tull gritava: “Tente aqui! Tente ali!”
Isso é ridículo!, pensei, enquanto a luz aos poucos se extinguia e a umidade penetrava em minhas roupas. Tull me olhava calado, e acho que leu meus pensamentos. Apontando para um pequeno grupo de árvores, a menos de cinco metros do lava-carros, ele suplicou: “Por favor, tente só mais aquele lugar.”
Saí do fosso, resmungando: “Se isso for mesmo alguma espécie de ícone da igreja e se Deus quiser que seja encontrado, assim será. Está nas mãos Dele, e não nas minhas. Vou para casa e esquecer essa história.” Nem 30 segundos depois, o detector de metais emitiu um bipe forte. Havia algo realmente grande enterrado entre as pequenas árvores.
Tull afastou as folhas e enviou a pá na terra. A lâmina bateu em algo sólido antes de chegar a 15 centímetros de profundidade. Ele se ajoelhou e começou a cavar com as mãos nuas, tirando lama entre as pernas, como um fox terrier alucinado. Fiquei olhando espantado, quando ele desenterrou um aro de cerca de 90 centímetros de diâmetro, certamente nada que se assemelhasse a um relógio.
- Ora, não é isso – eu disse, e comecei a me afastar.
- Do que você está falando? – reagiu Tull. – Nós o encontramos! Volte aqui e me ajude!
Obedeci e, ao cavarmos mais, vi um imenso sino de igreja.
De repente me lembrei de que a palavra estoniana para “relógio” era a mesma para “sino”. Mas como “relógio” era muito mais comum, eu entendera tudo errado, desde o início.
- Precisamos de ajuda! E temos de contar ao antigo pastor da igreja – disse Tull. – Ele estava em Emmaste quando o sino foi enterrado.

Um cachorrinho latiu, excitado, quando paramos diante da velha casa de fazenda em que morava o pastor Reinvalla. Sua mulher já tinha aberto a porta quando chegamos à varanda.
- Onde está Guido? – perguntou Tull, nervoso.
A mulher nos olhou intrigada.
- Está assistindo à TV – começou a dizer -, mas o que...?
Tull passou depressa por ela e entrou na sala. Agarrou o pastor pelos ombros e o sacudiu com tanta força que quase derrubou os óculos do pobre homem.
- Gudo! Encontramos o sino! – gritou.
- Por que está gritando? – perguntou o pastor. – O que você quer?
- Encontramos o sino! – repetiu Tull. – O sino da igreja de Emmaste!
Depois de alguns segundos, a compreensão se espelhou no rosto do pastor e seus olhos se iluminaram.
- O sino! – exclamou ele, levantando-se de um salto.
Largando a bengala, foi direto para a porta da frente.
- Você não vai sair sem o casaco e as botas – disse a mulher, agarrando-o pelo colarinho.
Enquanto ela o ajudava a se calçar e colocava um boné em sua cabeça, o pastor parecia uma criança querendo fugir para brincar na primeira neve do inverno.
- deixe-me ir! – insistiu ele, libertando-se finalmente.
A mulher lhe estendeu a bengala, mas ele não fez caso. Quando partimos, olhei para trás e vi a silhueta dela delineada contra a luz da porta aberta, as mãos dobradas numa oração silenciosa de agradecimento.
Quando paramos o carro na estrada lamacenta perto do lava-carros, o pastor Reinvalla foi o primeiro a descer. Agarrado ao braço de Tull, dirigiu-se ao lugar onde o sino se achava meio desenterrado. Ali caiu de joelhos, aos prantos.
Duas senhoras passaram de bicicleta e pararam para saber por que o pastor estava ajoelhado. Aproximaram-se, deram uma olhada no sino e partiram a toda. Dali a pouco começaram a chegar os moradores de Emmaste. Quando ou cinco de nós tentaram puxar o sino da terra, mas ele não se moveu. Por fim, alguém surgiu com uma escavadeira.
O sino foi erguido e carregado por cerca de 400 metro, e em seguida colocado no piso da igreja. O pastor rezou um breve ofício para Benzê-lo e dar-lhe as boas-vindas ao lar

Dias depois voltei aos Estados Unidos para as festas de fim do ano. A rota do vôo que deixava Tallinn passava bem por cima de Hiiumaa. Olhei para a ilha em forma de cruz, lá embaixo.
Imaginei o sino tocando pela primeira vez em mais de 50 anos. Nas noites geladas o som chegaria às aldeias vizinhas, chamando as pessoas para presenciar o milagre em Emmaste. “Feliz Natal”, murmurei.

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