terça-feira, março 13

Carta do sétimo céu

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autora : Helene Hanff

Quem disse que as pessoas não se comunicam mais? Depois que a autora escreveu um livro que foi publicado em Seleções, descobriu, de repente, um fascinante mundo de pessoas estranhas – “gente maravilhosa que vive do lado de lá de um simples selo de correio.”

Queridos amigos:
Vocês todos sabem, por certo, que ninguém mais neste nosso mundo do século XX pode comunicar-se com mais ninguém: o indivíduo foi tragado pela atual sociedade, enorme e computadorizada. O Sr. Thomas Lask abordou precisamente este ponto na sua crítica, para o Times de Nova York, do meu livro 84, Charing Cross Road. Este livro contém a correspondência que eu mantive durante 20 anos com um empregado de Marks & Co., uma livraria de Londres. (Jamais conheci o homem nem a loja; nunca tive dinheiro para viajar ao exterior.) Em sua crítica, o Sr. Lask disse que o livro agradaria a “todos aqueles cuja humanidade foi reduzida a um cartão perfurado”.
Teria evitado problemas, se tivesse parado por aí. mas foi adiante e concluiu sua crítica brincando ao dizer que como a livraria em breve seria fechada, ele sugeria uma coleta para que eu fosse à Inglaterra ver a loja, e que eu poderia contar, de sua parte, com “qualquer importância até cindo dólares”.
Alguns dias depois, o Sr. Lask começava a receber cartas como estas:

“Prezado Sr. Lask: O seu carinhoso apelo tocou diretamente o meu coração. Em anexo os meus cinco dólares.”

“Em anexo vai um dólar; lamento não poder enviar mais. Se precisar de ajuda para organizar a coleta, terei prazer de oferecer meus serviços.”

Bem, o Times ficou um pouco nervoso diante desta coleta mítica, e o Sr. Lask devolveu o dinheiro aos doadores. Quanto a mim, tentei compreender por que motivo pessoas sérias e sensatas, leitores do Times, haveriam de oferecer seu dinheirinho suado para financiar uma viagem à Europa de uma escritora qualquer que eles jamais conheceram. Não conseguia atinar com a resposta.
E aí, durante o mês de setembro, começaram a chegar cartas de admiradores à minha caixa postal. Uma delas vinha de uma senhora idosa, que anexava um cheque de 25 dólares: era para que eu comprasse um livro e um bule de chá por sua conta, quando um dia chegasse a Londres. (Devolvi o cheque, com meus agradecimentos, e a senhora tornou a escrever, dizendo que compreendia, e que viria a Nova York passar o inverno. Será que eu tomaria então um chá com ela? Fui, ela emprestou-me alguns livros, e depois veio aqui tomar chá e ver minha biblioteca.)
Em dezembro, a condensação de 84, Charing Cross Road começou a aparecer nas edições internacionais do Reader’s Digest e nesse ponto acelerou-se o ritmo da coisa. Em breve choviam cartas de todos os pontos dos Estados Unidos, do Canadá, da Irlanda do Norte, da Itália, da Malásia Ocidental, da África Ocidental, da Arábia Saudita, do Paquistão – de toda parte!
O fato admirável quanto à correspondência dos leitores de Seleções é que ela tenha chegado às minhas mãos. Embora o livro contivesse tanto o meu endereço atual como o anterior, conhecendo a sua própria força Seleções procurou proteger minha tranqüilidade, omitindo o meu endereço atual na condensação do livro.
Sem desanimar, porém, alguns de vocês enviaram suas cartas a/c de Seleções, que as endereçou aos editores do livro, os quais as remeteram para mim. Os restantes de vocês mandaram cartas para meu endereço antigo, 14 East 95th Street. Como eu me mudara de lá havia apenas 15 anos, as cartas perambularam durante algum tempo, e quando chegaram às minhas mãos os envelopes estavam profusamente cobertos de carimbos e observações manuscritas: “Mudou-se. Não deixou endereço.” “Não mora neste endereço.” “Desconhecida em 14 East 95.” Embaixo de todos estes, na extremidade inferior de cada envelope, estava escrito a lápis: “Tente 305 East 72 10021.” Envergonho-me de confessar que ainda não fui à agência de correios (munida de uma garrafa de uísque) para descobrir, e agradecer ao carteiro sobrecarregado que, semanas a fio, deu-se ao trabalho de re-endereçar minhas cartas.
Nas semanas que precederam o Natal, surgiu uma complicação. A venda do livro não ia bem e os livreiros não tinham feito grandes encomendas. Agora, graças a Seleções e ao Natal, houve uma procura súbita, que apanhou o editor desprevenido. Era-lhe inteiramente impossível entregar aos livreiros uma nova edição a tempo de servir como presente de Natal.
Nada nos faz querer tanto uma coisa como ser informados de que não podemos obtê-la. Não encontrando Charing Cross em suas livrarias, os eventuais compradores começaram a escrever-me. Um homem escreveu dizendo que queria mandar o livro como presente de Natal para a sua garota. Ficaria gratíssimo se eu fizesse uma dedicatória, dele para ela, acrescentasse o meu nome, e despachasse o livro pelo correio, escrevendo-lhe depois para dizer quando ele me devia, e que me mandaria imediatamente um cheque. Com enorme gratidão.
Pensei em não tomar conhecimento, mas minha consciência me perturbava. E assim, escrevi no livro: “De John para Marge”, autografei-o, embrulhei-o para presente, coloquei-o no invólucro especial, de papelão, carreguei-o até ao correio e remeti-o . Só na quarta vez em que fiz isso – escrever, autografar, embrulhar para presente, colocar no papelão e carregar até ao correio – foi que olhei para a longa fila à minha frente, no guichê das encomendas postais, e perguntei a mim mesma: “O que é que você está fazendo? Você não é uma livraria!”
De um modo geral, dezembro foi um mês de loucura. Quando chegou o Natal, eu havia esgotado cinco caixas de cartões de Natal, duas de papel de carta e montes de selos – só para agradecer as cartas de todos vocês.
O Natal me trouxe também presentes. Um admirador deixou para mim, na portaria do meu prédio, um lindo livro encadernado em couro e gravado a ouro, publicado em 1875, intitulado Gleanings for the Curious From the Harvest Field of Literature. Houve um senhor que me mandou um pacote de selos de Marks & Co. (ele é colecionador de selos de livrarias). Uma senhora de sobrenome igual ao meu, embora não seja parente, enviou-me o brasão dos Hanff, cheio de unicórnios rampantes, campos de prata, uvas pendentes e estribos, em verde, azul, roxo e prateado, e montado, pronto para ser emoldurado.
Chegou janeiro, e vieram as cartas de “segunda mão” de admiradores. Por exemplo, um homem mandou três bilhetes de agradecimento, grampeados, explicando que havia mandado o livro como presente para Becky, que o emprestara a Sarah, que o passara a Jô. Jô devolveu o livro a Sarah, com um bilhete; Sarah devolveu-o a Becky, com o bilhete de Jô e mais um dela mesma; e Bechy enviou um bilhete, anexando os outros dois, ao homem que mandou os três bilhetes para mim.
As atenções continuaram a crescer, e em março eu estava tão acostumada que, quando desci para buscar a correspondência, certa manhã, e não encontrei na caixa a não ser uma conta, tive uma profunda sensação de rejeição. Tornei a subir, triste e desamparada, como que diz: “Para onde foi todo mundo?”
Logo as coisas melhoraram de novo. Em abril, oito admiradores descobriram no livro o parágrafo que mencionava o meu aniversário; seis deles enviaram cartões, e dois mandaram bombons.
No mês seguinte, colunistas literários de jornais londrinos anunciaram que em junho apareceria a edição inglesa do livro, publicada por André Deutsch, e que eu faria minha primeira viagem a Londres para o lançamento do livro. Em conseqüência, recebi da Inglaterra uma quantidade enorme de cartas generosas e cheias de carinho.
Um cavalheiro escreveu de Londres dizendo que trabalhava no aeroporto de Heathrow; se eu avisasse a data da minha chegada, ele me receberia “antes que seus pés delicados toquem solo inglês”, me ajudaria a passar pela alfândega e pela Imigração, e depois me entregaria aos amigos que estivessem esperando. Se não houvesse ninguém, ele me levaria para o hotel – e se não tivesse sido feita reserva no hotel, eu ficaria no quarto de hóspedes do seu apartamento em Chelsea. A carta trazia ainda o nome e o telefone de uma senhora que ele conhecia em Connecticut, a que eu poderia telefonar a fim de verificar a sua total respeitabilidade. Quando escrevi agradecendo e informando a data da minha chegada, ele respondeu dizendo que tiraria alguns dias de férias naquela semana e me levaria a passear pelo interior da Inglaterra.
Nora Doel, a viúva do homem com que eu me correspondera durante quase 20 anos, escreveu que estava, ela também, tirando férias para passear comigo. (Dizia que o livro lhe trouxera quase tanta correspondência quanto a mim, inclusive uma proposta de casamento, de um cavalheiro que lhe surgira à porta, com armas e bagagem. Eu recebera duas propostas de casamento, de um americano de Ohio e de um senhor que mora na Malásia Ocidental.)
Estamos agora no mês de maio, e duas novas cartas completam o quadro. Uma é do meu mais dedicado admirador – um homem de negócios americano que vive em Bruxelas, com a mulher e quatro filhos. Ele me visitou em dezembro, trazendo um exemplar do livro para autografar, dois discos e uma garrafa de uísque de presente. Na semana passada recebi carta sua e de sua mulher dizendo que, uma vez que eu ia a Londres, não podia deixar de programar uma ida a Bélgica para um fim de semana na casa deles, em Waterloo. Respondi agradecendo, mas como eu ia a Londres com pouco tempo e pouco dinheiro, não poderia pensar em outras viagens. A carta de hoje diz que ele e a mulher irão a Londres me apanhar, me levarão para Waterloo, depois a Copenhague e a qualquer outro lugar que eu queira ir.
E sobre a minha mesa está uma carta da Livraria Dalton, de Las Vegas, que é a maior glória. É a segunda carta de Dalton. A primeira, recebida na semana passada, dizia apenas: “Se a senhora chegar até Las Vegas, por favor venha à nossa loja.”
Achei cômico, pois meus rendimentos não permitiriam jamais uma ida a Las Vegas. Em meu bilhete de agradecimento à moça da livraria Dalton expliquei o fato, acrescentando que eu talvez fizesse minha primeira visita a Los Angeles no outono, e que isso já seria uma grande felicidade.
Chegou a segunda carta. “Quando vi que uma coisinha à toa como dinheiro poderia impedir que a senhora viesse à nossa cidade, pus mãos à obra”, escreveu a moça da Dalton. “Há um vôo da TWA, de Los Angeles, via Las Vegas, para Nova York. Assim, está resolvido o problema das despesas de transporte.”
“Em seguida, acomodação. A senhora fez muitas amizades aqui, com o seu livro, e temos um quarto para a senhora num dos melhores hotéis, com os cumprimentos da gerência. Jantares e espetáculos estão incluídos. Estamos todos de acordo em não aceitar uma resposta negativa.”
E assim, lá vou eu para Londres e Bruxelas, e depois para Los Angeles e Las Vegas – naturalmente com a condição de que alguém me faça descer do Sétimo Céu a tempo suficiente para me por num avião, e depois me ponha de novo lá em cima.
Eu costumava ficar acordada, à noite, tentando compreender o que havia acontecido. Nada mais fiz do que escrever um livro, e o céu abriu-se par mim. E para ser franca, em minha opinião pessoal, o livro não é nem grande coisa; são apenas cartas entre mim e um inglês – e algumas outras pessoas – que nunca vi, de uma livraria onde nunca estive. Mas, uma noite na semana passada, lembrei-me de repente de algumas linhas de uma crítica sobre o livro. E afinal compreendi. As linhas foram escritas por Haskel Frankel, em The Saturday Rewiew:

Se um coração americano, impetuoso, pode penetrar a austeridade de um inglês, o que não será possível entre as pessoas, neste mundo torturado? E o que é a solidão senão uma ilusão de sofrimento particular, que as pessoas estão esperando dispersar, do lado de lá de um selo postal?

Portanto, aí está, caros amigos: Nós estávamos enganados. Acreditar que as pessoas não mais se comunicam entre si é comprovadamente – como a solidão – uma ilusão. O indivíduo – o ser humano, singular, imprevisível, inclassificável e extraordinário – está vivo, está bem, e morando do outro lado de um selo postal, da Arábia Saudita à Terra Nova à Rua 72 East.
E é por isso que, agora que o correio voltou à sua condição normal, de entregar propaganda e contas, achei que havia chegado a hora de escrever a minha própria carta de admiradora, a todos vocês, pessoas maravilhosas que me telefonaram e me escreveram, me obsequiaram com comida e bebidas, e me mandaram presentes; a todos vocês, estranhos, generosos e bondosos, cuja existência eu talvez ignorasse e que, de milhares de quilômetros de distância, deram-me a honra de me chamar amiga.
Obrigada por tudo.
Que Deus os abençoe.
Helene Hanff.

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