segunda-feira, fevereiro 5

Sempre a pé

Fonte : Revista Seleções
Data : setembro de 1983
Autor : Robert Thomas Allen

Fique em contato com as coisas fundamentais que fazem o mundo parecer melhor!

Numa manhã de sábado, há algum tempo, observei uma família que, acompanhada pelo seu cão, passava fazendo o Cooper, perto do meu apartamento. Pouco depois, uma menina de seus oito anos, vestindo uma roupa de treino vermelha, passou correndo, trancinhas ao vento, acompanhada por um homem de bicicleta – seu pai, treinador ou agente. Comecei a pensar se ainda haverá quem saia simplesmente para passear. Caminhar costumava fazer parte de nossa vida; era uma espécie de moralidade e um sinal de força de caráter, tal como manter o vinco das calças ou pagar as dívidas.
“Aquele moço é um grande andarilho”, diria uma senhora a propósito de algum jovem da vizinhança, como se pensasse que ele daria um ótimo genro; diria o mesmo, também a respeito de algum seu irmão de 50 anos, roliço, careca e solteiro (“Willy adora caminhar”), como se achasse difícil compreender por que é que ele não fora pescado por alguma mulher com sólido sentido dos valores.
Os médicos orgulhavam-se de fazer a pé as visitas domiciliares; com qualquer tempo, e ainda hoje, me parece ver o nosso médico de família surgindo por entre borrascas desencadeadas. Sacode a neve dos sapatos no vestíbulo, dirige-se para o quarto e dá pancadinhas no meu peito com os dedos compridos, frios e limpos, cheirando levemente a clorofórmio. “Não tem nada grave este rapaz”, diz, e aconselha mamãe a esfregar linimento no meu peito, dar-me limonada quente, embrulhar-me o pescoço em flanela vermelha e obrigar-me a ficar de cama até o fim de semana. “Ouvi contar que você é um grande andarilho”, diz ele ao sair, para papai, que o aguardava no fundo das escadas.
Meu pai ia a pé para o centro da cidade, onde trabalhava como ourives, e regressava de novo a pé todos os dias, inclusive sábados; caminhava com passadas longas e descontraídas, balançando os braços ou por vezes com uma das mãos atrás das costas. Chegava para jantar, fosse sob uma temperatura gélida ou debaixo de uma tempestade de neve, com os óculos embaçados e o rosto rosado e feliz, louvando o prazer de respirar o ar frio e puro: “É como beber um copo de vinho.”
Algumas das minhas recordações mais agradáveis são de passeios no inverno. Lembro-me das voltinhas que dava depois do jantar com o meu vizinho do lado, que adorava sair quando havia nevascas. Assim que a neve começava a cair contra as vidraças e a amontoar-se nas ruas, era certo o telefone tocar: “Você quer ir dar um passeio?”
Nossas mulheres ficavam nos observando através das janelas das salas até desaparecermos rua abaixo, como personagens tiradas de Guerra e Paz.
Dirigir, nos primeiros dias em que surgiu o automóvel, era considerado ligeiramente imoral e um sinal de decadência. “Ir de carro?”, perguntava alguém quando sugeríamos pegar o carro da família para ir buscar um tijolo de sorvete quatro quarteirões adiante. “Que é que você quer dizer com isso?” Tal sentimento nunca consegui ultrapassar completamente, e mesmo hoje, por vezes quando entro no carro para me deslocar a seis ou sete quarteirões até o shopping center, dou por mim sentindo-me culpado, como se tivesse perdido a minha fibra moral.
Quando consegui meu primeiro emprego, eu dava longos passeios durante a hora do almoço. De vez em quando, encontrava um colega do escritório que me parecia algo diferente de quando estava no trabalho, com a gola do casaco levantada, luvas calçadas, debruçado sobre uma ponte ou olhando a vitrina de uma loja de penhores. Íamos a pé, do trabalho para casa, a fim de economizarmos dinheiro. Às vezes, quando vejo algum jovem caminhando rapidamente, não posso deixar de pensar que deve ter ficado a trabalhar até mais tarde nalguma loja de departamentos, e está atrasado para ir para casa (digamos, por exemplo, uns 50 anos); vai a pé para poupar o dinheiro da condução e juntá-lo ao que poupou comendo menos ao jantar, pois está economizando para se casar com a moça gordinha e gentil que trabalha na seção de reembolso.
Hoje em dia é difícil acreditar, mas no meu tempo levávamos as garotas a passear. Subíamos os degraus de uma varanda sombria, numa noite de breu, num bairro desconhecido, seis quarteirões ao sul do lugar onde vivíamos, fazíamos rodar a campainha da porta, tocávamos a aba do chapéu e convidávamos: “Você não gostaria de dar uma volta?” “Adoraria”, respondia ela, se você tivesse sorte. “Espere aí que vou pedir ao papai.”
Tenho reparado que as pessoas estão começando a achar que caminhar, quando há possibilidade de ser transportado, é algo meio incomum, se não completamente anormal. Numa parada de ônibus, ouvi uma senhora comentando sobre outra, alta e ruiva, que passara caminhando magnificamente inclinada contra o vento. (“Ela vai a pé para casa todas as noites!”). Falava como alguém que colecionasse velharias.
Apesar de tudo isso, espero que as pessoas não esqueçam o prazer de caminhar. Alguns dos melhores momentos do meu dia a dia são quando me dirijo para casa, vindo do centro, ao longo de uma rota já conhecida. Há um carvalho muito grande e velho no caminho e, ao passar, sempre toco a sua casca rugosa e reconfortante, como se de um abrigo se tratasse. Há também uma mesa de piquenique que eu gosto de admirar. Quando o sol brilha sobre ela, dá a sensação de que está no centro do universo. Não sei bem por que, mas ela sempre melhora minha disposição; talvez seja qualquer coisa na maneira como está ali, ensolarada, tranqüila e recatada, que me faz sonhar com cestas de piquenique, corridas de sacos, sanduíches, bebês e avós.
Existe certo momento durante um passeio, se ele for suficientemente longo, em que a tensão e a rigidez dentro de nós se desfazem subitamente e nos tornamos parte do mundo à nossa volta – num dia bonito, chuvoso, calmo ou nevoento; numa manhã de verão, suave e fragrante, em que o mundo cheira a flores, a asfalto, a terra, a grama e a árvores mornas, e nos recorda outros dias de verão que conhecemos. Paramos só para olhar a beleza simples de uma velha e ferrugenta cerca de estrada de ferro, ou de um gramado esquecido, semeado de dentes de leão e margaridas.
Há algum tempo tive de sair para ver alguém numa noite fria, negra e impossível. Peguei o metrô; mas, quando terminei a minha entrevista, saí para dar um passeio e, aparentemente, era eu a única pessoa que caminhava pela cidade...ou no mundo! Dois jovens policiais numa radio patrulha observaram-me interessadamente, como se alguém andando cá fora numa noite assim não pudesse estar fazendo aquilo apenas por prazer. O fato é que eu estava. Ia tomando contato com coisas fundamentais, como o silêncio, o mover minhas pernas e meus braços, o respirar o ar fresco, o olhar para o alto através das ramadas das árvores – coisas que fazem o mundo parecer melhor, como sempre acontece quando se sai a passear.

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