quinta-feira, fevereiro 1

A magia de Andrés Segovia

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Noel F. Busch

Outrora considerado próprio apenas para botequins, graças a Andrés Segovia, o violão forma hoje ao lado de qualquer grande instrumento de concerto a magia de Andrés Segovia.

No palco só um banco de piano e um banquinho com precisamente 12 centímetros de altura. Uns três minutos depois da hora marcada, um setuagenário gorducho, de ar tranqüilo, vestindo casaca, aparece lentamente carregando seu belo violão. Acomoda-se no banco de piando, apóia o pé esquerdo no banquinho menor e olha para a platéia com uma expressão suave de indulgência. Cessa o rumor das conversas e, depois de um silêncio total, de talvez uns 20 segundos, seus dedos fortes começam a mover-se pelas cordas. Daquele momento em diante os ouvintes experimentam um raro e inesquecível encantamento. Porque o executante é Andrés Segovia, o maior violonista clássico do mundo.
Para principiantes, há poucos instrumentos mais fáceis que o violão. Com apenas alguns acordes simples em seus repertórios, milhões de pessoas no mundo inteiro arranham seus violões e se divertem à grande. Mas tocar bem é outra coisa. O violão tem uma gama imensa de tons e timbres, e uma extensão tão rica e complexa quanto o violino. Para conservar sua técnica, Segovia ainda hoje exercita-se cinco horas por dia.
Desde os 15 anos o principal objetivo de Segovia tem sido elevar seu instrumento no conceito público a um nível comparável ao seu próprio. Isso ele conseguiu fazer melhor do que esperava, e ainda por cima enriqueceu. Da maioria dos 30 LP’s que gravou venderam-se mais de um milhão de cada disco, que lhe renderam entre 90.000 a 100.000 dólares por ano.
Aos 78 anos de idade, Segovia continua a dar de 50 a 75 concertos por ano na Europa e nos Estados unidos, todos – sem qualquer publicidade a não ser uma notinha nos jornais – com lotação esgotada (proporcionando-lhe uma renda anual de 250.000 dólares). Diz Sol Hurok, seu empresário nos Estados Unidos: “Se tivéssemos tempo de dar cinco recitais por ano em Nova York, em vez de três, seria fácil esgotar a lotação de todos.”
O público de Segovia consiste principalmente – como o dos espetáculos de conjuntos de rock – de gente jovem, para quem a música de violão parece ter um atrativo especial. “Gosto de roubar os jovens aos Beatles”, diz Segovia rindo. Mas os concertos de Segovia não são absolutamente semelhantes aos espetáculos meio caóticos da maioria dos grupos de rock. Se se ouvir qualquer ruído que não a sua música, Segovia para de tocar e espera calmamente que se restabeleça silêncio absoluto.
Em suas tournées pelo mundo, Segovia leva apenas um violão, que é o que ele pode carregar pessoalmente. Dispensa os maiores cuidados ao instrumento, leva-o para a sala de concerto e o traz de volta, e regula a temperatura de seus aposentos tanto para sua conveniência quanto para a do violão.
Nos Estados Unidos, em pleno inverno, por exemplo, a primeira providência de Segovia ao entrar numa suíte de hotel é desligar o aquecimento e abrir as janelas para refrescar o quarto até obter a temperatura que ele considera adequada ao violão. O instrumento que ele usa foi fabricado por José Ramirez, de Madrid, a quem considera um dos três melhores fabricantes do mundo. É feito de seis qualidades de madeira e vale perto de 500 dólares.
Referindo-se aos seis meses do ano que passa excursionando, Segovia diz: “Levo vida sedentária, a 800 quilômetros por hora.” No resto do ano ele está com sua jovem esposa, Emilia ( a terceira ), e o filhinho Carlos Andrés, em sua grande casa de campo perto de Granada, e em Santiago de Compostela – algumas semanas de verão – dando aulas particulares a alunos escolhidos. Perto dos 80 anos, a não ser pela catarata – foi operado em 1968 e novamente em abril deste ano – goza de excelente saúde e disposição.
Segovia ouviu um violão pela primeira vez quando criança em sua aldeia natal na Andaluzia, e o som pareceu-lhe ser o que esperava desde que nasceu. Era o seu som, a aos 10 anos já estava a caminho de tornar-se excelente executante.
Mas havia em seu caminho um enorme obstáculo. Na Espanha do fim do século, o violão era considerado instrumento apenas de músicos ciganos que acompanhavam dançarinos flamencos. Criado em Granada por tios abastados, Segovia aprendeu os rudimentos da técnica de um violonista flamenco que virara barbeiro. Mas quando tratou de tomar aulas com um professor de nome, não encontrou nenhum.
No Instituto de Música de Granada, onde passou a maior parte de sua adolescência, Segovia aprendeu a tocar sozinho, aperfeiçoando a técnica aprendida com o barbeiro. Um desses aperfeiçoamentos foi manter o polegar da mão esquerda bem baixo, atrás do braço do violão, em vez de curvado em volta dele, ampliando assim o alcance dos outros quatro dedos. Outro foi manter a mão direita em posição vertical às cordas, dessa forma aumentando a capacidade de feri-las. Diz Segovia: “Tornei-me meu próprio mestre – e também aluno. Ainda hoje é assim, apenas o mestre está agora mais satisfeito.”
Pesquisando bibliotecas musicais em busca de velhos manuscritos e adaptando as partituras dos grandes compositores para outros instrumentos, Segovia em breve adquiriu um repertório clássico suficiente para demonstrar sua firme convicção de que o instrumento então desprezado podia rivalizar com o piano ou o violino como meio de interpretação. Mas quando um amigo conseguiu-lhe um recital informal em Granada, em 1910, Segovia assombrou-se ao ver que a platéia, embora convertida ao violão, atribuía o sucesso mais à sua interpretação do que às virtudes do instrumento.
Forçado a interpretar o papel de virtuose do violão, continuou a dar recitais. Por fim, em 1913, ele teve o que chamou sua “verdadeira estréia”, em Madrid. Segovia achou que a ocasião exigia um violão realmente bom. Como os pianistas de concerto geralmente alugam seus instrumentos, ele não via motivo para um violonista de concerto não fazer o mesmo, e procurou a loja então dirigida por Manuel Ramirez, tio avô do atual proprietário. Divertido com a presunção daquele jovem inteiramente desconhecido, Ramirez deu-lhe licença para procurar um violão que lhe agradasse. Tendo encontrado o melhor da loja, Segovia sentou-se e durante meia hora ensaiou a música que havia escolhido para o recital.
Ramirez escutou-o a princípio com surpresa, depois com assombro. Quando parou de tocar, Segovia disse:
“Gosto deste. Quanto o senhor cobra de aluguel por uma noite?”
Com os olhos cheios de lágrimas Ramirez respondeu:
“Nada. O violão é seu. É presente.”
O concerto em Madrid foi um sucesso retumbante, e a estréia de Segovia como astro internacional deu-se 11 anos depois em Paris, diante de uma platéia de celebridades. A acolhida que recebeu do público e dos críticos deu-lhe de um dia para o outro, aos 31 anos, o título de melhor violonista do mundo.
Um motivo da insistência de Segovia por silêncio absoluto em seus concertos é que as notas do violão são mais suscetíveis de serem abafadas do que as da maior parte dos outros instrumentos de concerto. Outro motivo é que a algazarra típica dos teatros e tabernas de danças flamencas parecia-lhe demonstrar exatamente aquele desrespeito pelo instrumento que ele deplorava. Por isso, logo aprendeu a não dar recitais em casas particulares, onde, conforme observara, as anfitrioas européias convidavam gente de mais e depois não conseguiam manter os convidados em silêncio.
Ao chegar aos Estados Unidos, pela primeira vez, em 1928, Segovia ficou aborrecido ao verificar que seu primeiro recital seria numa casa particular, na distante vila de Proctor, no Estado de Vermont. Apesar de ser o homem mais afável do mundo, exceto quando sua dedicação ao violão está em jogo, Segovia ameaçou cancelar a excursão se não o desobrigassem do compromisso, e só o convenceram a reconsiderar sua decisão mediante ameaças de sérias sanções legais.
Ao chegar à modesta casa de Proctor, onde deveria hospedar-se, Segovia jantou e depois conduziram-no ao seu quarto, onde ele vestiu seu traje a rigor. À hora marcada desceu de sobretudo, preparado para ir aonde fosse o local do concerto. Só então soube que seria ali mesmo, na casinha em que estava hospedado. Levado à sala de estar, descobriu que a platéia era formada de três pessoas, a idosa dona da casa, sua dama de companhia e seu irmão.
A mulher então explicou que tinha assistido à sua estréia em Paris, e tornara-se imediatamente sua admiradora, tanto que insistira em contrata-lo para seu primeiro espetáculo nos Estados Unidos, pagando-lhe tanto quanto ele recebia normalmente quando tocava para uma sala repleta. Profundamente comovido com a homenagem, Segovia teve uma das noites mais felizes de sua vida musical.
Setenta anos de violão tiveram certos efeitos sobre o físico de Segovia. Para começar, suas mãos não são do tipo delicado, esguio, de dedos longos, geralmente próprias dos músicos. São grossas, fortes, musculosas. Depois, devido a muitos anos de distensão, os dedos da mão esquerda tem cerca de seis milímetros mais do que os da direita, e as unhas são cortadas de maneira diferente. Enquanto a maior parte dos violonistas flamencos tangem as cordas com as unhas e alguns violonistas clássicos anteriores a Segovia as tangessem com as pontas dos dedos. Segovia criou um sistema de tocar com as pontas tanto quanto com as unhas, numa mistura que constitui uma das nuanças da sua técnica. Para facilitar isso, ele deixa que as unhas da mão direita cresçam cerca de uns quatro milímetros além da carne, enquanto as da esquerda são aparadas muito mais curtas, para não impedir que as pontas dos dedos toquem as cordas.
Em sua campanha para elevar o prestígio do violão, Segovia não se contentou apenas em demonstrar sua virtuosidade de excecutante. Tem feito também tremendos esforços – e com sucesso – por descobrir ou adaptar composições clássicas para o violão, tem convencido compositores modernos a escreverem para o violão e ensinou pessoalmente a uma nova geração de violonistas clássicos que estão seguindo seus passos.
O fato de que esse ressurgimento do violão tem sido suas principais manifestações no rock e na música popular não preocupa Segovia em absoluto. Talvez a amplificação eletrônica seja supérflua, mas ele aprova os executantes porque refletem por pouco que seja, o amor que ele sente pelo violão.
Na opinião de Segovia, a beleza estética consiste essencialmente em um ato de amor entre o artista e seu meio de criação. Talvez seja este sentimento que se comunica ao público quando, nos momentos de absoluto silêncio que precedem um recital, Segovi pega o violão e fere suas cordas mágicas.

Nenhum comentário: